Mundo
Esqueletos no armário
Nas Filipinas, patologista forense revela o verdadeiro preço da guerra às drogas de Rodrigo Duterte


Em um antigo almoxarifado de universidade, com mesas de madeira resgatadas de um lixão, Raquel Fortun começou a investigar a impiedosa repressão lançada no governo do ex-presidente filipino Rodrigo Duterte. Uma dos dois únicos patologistas forenses do país, Fortun passou mais de 18 meses examinando os restos mortais exumados de dezenas de vítimas da chamada “guerra às drogas”, revelando sérias irregularidades na forma como suas autópsias foram realizadas – incluindo diversos atestados de óbito que erroneamente atribuíram as mortes a causas naturais.
Mais recentemente, suas descobertas levantaram questões sobre os exames realizados no corpo de Kian delos Santos, um garoto de 17 anos cuja morte no auge dos tiroteios provocou indignação global. As Filipinas não produzem automaticamente autópsias em casos de morte violenta, observa Fortun. O padrão, onde elas ocorrem, é ruim, com evidências frequentemente descartadas. “Temos instituições muito fracas, pessoas desqualificadas, uma lei muito antiga. Aí vem um louco, ascendendo ao topo como presidente, e acho que ele apenas se aproveitou disso.”
Duterte ordenou repetidamente que a polícia matasse suspeitos de tráfico de drogas. “E assim foi feito, eles mataram”, diz a patologista. Em janeiro, o Tribunal Penal Internacional disse que prosseguiria suas investigações sobre os assassinatos, que segundo suas estimativas deixaram entre 12 mil e 30 mil mortos. O trabalho havia sido suspenso enquanto avaliava uma reclamação das Filipinas, que disse ter iniciado suas próprias investigações e, portanto, o caso deveria ser adiado. O argumento foi rejeitado.
O presidente Ferdinand Marcos Jr., que assumiu o cargo no ano passado após uma campanha conjunta com a filha de Duterte, Sara, agora vice-presidente, chamou a investigação do TPI de “intrusão em nossos assuntos internos”, dizendo que o país tem um “bom” sistema policial e judiciário. Para os ativistas, as descobertas de Fortun são, porém, mais uma prova de que as instituições das Filipinas não estão conseguindo fazer justiça. Ela está ciente de 12 atestados de óbito, incluindo 11 dos 74 restos mortais que examinou, que atribuem erroneamente as mortes a causas naturais como pneumonia ou sepse. “Isso faria a gente se perguntar: eles estavam envolvidos, foram cúmplices? Estavam apenas tomando um atalho?”
Kian delos Santos foi encontrado morto, curvado em posição fetal, num beco escuro em Caloocan, na região metropolitana de Manila, em 2017, com uma arma na mão esquerda. A polícia argumentou que o matou em legítima defesa. No entanto, sua família apontou que ele era destro.
Imagens do CCTV mostraram a polícia arrastando um homem que correspondia à descrição de Santos para o local onde ele foi morto. Este é o único caso conhecido em que a polícia foi condenada por assassinato. Apesar do intenso escrutínio no momento de sua morte, os exames da Polícia Nacional das Filipinas e do Ministério Público não conseguiram detectar uma bala que ainda estava alojada em seu pescoço, de acordo com as descobertas de Fortun. “É uma evidência que foi perdida.”
Múltiplos homicídios foram registrados como “morte natural”, alerta Raquel Fortun
Tais omissões não são incomuns. Fortun encontrou pelo menos uma bala nos restos mortais de cerca de outras 15 vítimas. Ela também descobriu que apenas cortes superficiais foram feitos durante as autópsias no corpo de Santos, a indicar que nenhum exame interno foi realizado, apesar de o atestado assinado por um médico mencionar o conteúdo estomacal de Delos Santos.
Fortun começou a examinar os restos mortais de vítimas exumadas em 2021. Já se passaram cerca de cinco anos desde que Duterte lançou sua repressão, e as famílias dos mortos, que só conseguiam pagar por aluguéis curtos dos túmulos, enfrentavam cada vez mais o despejo dos cemitérios.
O padre católico Flaviano Villanueva começou a se oferecer para ajudar as famílias a exumar e cremar os restos mortais de seus entes queridos por meio de uma iniciativa chamada Projeto Arise. A opção de um exame por Fortun, para documentar provas, também foi oferecida às famílias.
O almoxarifado que Fortun usa foi reformado, mas seu trabalho ainda é feito com pouco dinheiro. Ela trabalha de graça, com um orçamento pequeno para cobrir os gastos com sacolas plásticas, supercola, um adesivo mais leve para os dentes e papel especial. Os restos mortais são entregues ao hospital para radiografia depois da meia-noite, porque o hospital local está ocupado demais para lidar com eles durante o dia. Um exame pode levar semanas, enquanto ela tenta conciliar o processo com sua função na universidade e lidar com outros casos.
Os despojos que ela examinou representam apenas “uma pitada de dezenas de milhares de pessoas mortas”, diz Fortun. “Mas a foto está aparecendo.” As vítimas são predominantemente homens e jovens. “São os mais pobres dos pobres. Vejo isso em seus dentes.”
Alguns são enterrados com imagens impressas em lona de seus rostos, roupas, calçados ou itens religiosos. Em dois casos, Fortun examinou vítimas usando uma pulseira da marca Duterte. “Uma viúva disse que o marido realmente se sentia seguro com aquilo no pulso.” Seus exames se somam às evidências que contradizem as narrativas de que os policiais agiram em legítima defesa. “Eles foram baleados não para imobilizá-los ou torná-los mais seguros para a polícia prendê-los – eles foram baleados várias vezes no peito, na cabeça”, diz ela.
De acordo com dados do governo, os policiais mataram 6.252 pessoas durante operações antidrogas de 1º de julho de 2016 a 31 de maio de 2022. Fortun se pergunta se algum dia será possível calcular com precisão os mortos. “Quem está contando?”, pergunta. “E as vítimas não recuperadas? Corpos jogados em rios, enterrados em covas clandestinas? Sabe-se ainda menos sobre assassinatos fora da região metropolitana de Manila.”
Conhecida por assumir casos politicamente delicados, Fortun sabe que seu trabalho traz riscos. Ela já atuou no exterior antes, mas a tentação de fazê-lo novamente passou há muito tempo. “Ok, esta é a razão pela qual eu fiquei. Eu precisava. E se eu for embora?” Quando conhece as famílias, ela não promete que os exames trarão justiça. “Mas ao menos eu lhes digo: obrigada por nos darem a chance de documentar as descobertas. Não sei se em algum momento isso chegará ao tribunal, mas pelo menos tentamos.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Esqueletos no armário”
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