Após a tormenta, a volta aos palcos

Criada por André Curti e Artur Luanda Ribeiro há 25 anos, na França, a Cia. Dos à Deux celebra, neste momento, não apenas o aniversário, mas a própria possibilidade de voltar a existir.

Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes, que estreou no Sesc Santo Amaro, em São Paulo, na sexta-feira 3, após três temporadas no Rio de Janeiro, é o primeiro trabalho da dupla depois de anos turbulentos.

É que o espetáculo Gritos, que estreou, em 2017, no Centro Cultural Banco do Brasil, tornou-se, acidentalmente, um símbolo dos desmandos do governo Bolsonaro na área cultural.

Já haviam sido mais de 200 as apresentações – algumas na Europa – quando, em 2019, a peça foi selecionada para um edital da Caixa Cultural. O prêmio previa a reunião de três montagens da companhia. No entanto, apenas dois espetáculos puderam ser apresentados. “O pessoal da Caixa, em Brasília, que nos conhecia há muito tempo, tentou nos explicar que Gritos teria de ser tirada da grade de programação”, conta Ribeiro.

Os dois artistas estavam então se fixando no Brasil, depois da longa temporada passada na França. De repente, viram-se no meio de algo incompreensível. “Foi um momento muito difícil. Estávamos voltando para o Rio, reformando o espaço onde funcionará nossa sede, na Glória, e Gritos era o nosso primeiro trabalho totalmente brasileiro”, recorda Curti.

“Como poderíamos supor que uma obra onírica e poética pudesse ser censurada?”, pergunta-se ainda Ribeiro. “O espetáculo tematizava, em um de seus poemas, o assassinato de uma travesti, mas tratava a transfobia de forma estilizada e metafórica. Mas sabe que, no fim, acho que o Bolsonaro, com tanta censura, acabou arrombando as portas para várias artistas trans?”

O novo trabalho da dupla, Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes, foi gestado durante o espanto. Primeiro, com a agressividade do governo Bolsonaro contra certas manifestações artísticas. Depois, com a pandemia, que tornou o contato com o público impossível.

A peça teve duas datas de estreia – em dezembro de 2021 e em março de 2022 – canceladas em decorrência das restrições sanitárias. Acabou por estrear apenas em agosto do ano passado, no Centro Cultural Oi Futuro, no Rio.

“A gente morreu e está renascendo”, resume Ribeiro. “E o espetáculo é reflexo disso. Ele quebra com a dramaturgia para que o público possa olhar para seus próprios abismos. É, sem dúvida, o espetáculo mais solitário dos nossos 25 anos de carreira. Tentamos nos reinventar de todas as maneiras.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Após a tormenta, a volta aos palcos”