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Resgate bem-vindo

Após o desmonte promovido por Bolsonaro, o programa Mais Médicos é relançado pela ministra Nísia Trindade

Resgate bem-vindo
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Recomeço. Os primeiros contratados irão atender os indígenas em Roraima, mas a ideia é suprir a falta de profissionais em todos os municípios brasileiros - Imagem: Fernando Frazão/ABR e Redes sociais
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A crise humanitária do povo Yanomâmi levou a ministra da Saúde, Nísia Trindade, a antecipar o retorno do Mais Médicos, destinado a prover profissionais de saúde nas regiões mais desassistidas do País. Bastou o governo anunciar o envio de 14 médicos para cuidar da população indígena em Roraima para o bolsonarizado Conselho Federal de Medicina, o mesmo que fechou os olhos para o uso de drogas ineficazes contra a Covid-19 e depois criou obstáculos para comprovadas terapias à base de cannabis, renovar a oposição ao programa. Em comunicado, a entidade promete tomar “providências imediatas” para recorrer da decisão judicial que autorizou a extensão de contratos de intercambistas.

Diante da oportunidade de colaborar para a resolução da falta de assistência médica em áreas remotas do Brasil, o CFM optou por repetir o erro de anos atrás, quando insuflou a categoria para resistir à vinda de profissionais estrangeiros para reforçar o atendimento à população. Em 2013, uma turba de jalecos brancos chegou a vaiar e chamar de “escravos” os médicos cubanos que desembarcavam no aeroporto de Fortaleza. Um gesto vexaminoso e incompreensível, pois desde o primeiro momento o programa deu preferência à contratação de brasileiros. Os intercambistas só eram chamados para os locais onde os nativos se recusavam a ir.

Em apenas um ano, o Mais Médicos conseguiu levar mais de 14 mil profissionais a 3.785 municípios e 34 distritos indígenas. O governo Dilma Rousseff autorizou, ainda, a criação de 39 novos cursos de Medicina em 11 estados, a fim de reduzir a dependência de estrangeiros. A despeito do êxito da iniciativa, Jair Bolsonaro fez questão de destruir o programa. Além de cortar recursos e não dar continuidade aos editais de contratação, o capitão provocou uma desnecessária crise diplomática com Cuba, que resultou na saída de milhares de médicos cubanos que atuavam, sobretudo, nas regiões Norte e Nordeste do País. O Mais Médicos mudou de nome, mas não chegou a ser extinto oficialmente. Apenas foi abandonado e tornou-se inexpressivo, mesmo diante da crise sanitária na pandemia de Covid-19.

O governo enviou 14 médicos para oferecer assistência ao povo Yanomâmi

Um dos profissionais brasileiros que atenderam ao primeiro chamado, em 2013, foi o médico Odarlone Orente, especialista em Saúde da Família e Comunidade. Formado pela Escola Latino-Americana de Medicina de Cuba, ele revalidou o diploma muito antes de imaginar que o Mais Médicos seria criado. Atualmente, é o supervisor do programa em Apucarana, no interior do Paraná, onde lidera uma equipe de nove médicos, dos quais apenas uma é estrangeira, vinda do Equador. Orente atravessou toda a crise causada por Bolsonaro. Viu o programa esvair-se e muitos colegas irem embora. Ainda assim, conseguiu segurar as pontas para não deixar que a região onde atua ficasse desassistida. “É impressionante a capacidade do programa de levar profissionais para áreas muito remotas do País. Talvez por isso Bolsonaro não teve coragem de acabar de uma vez com o Mais Médicos, mas ele foi paulatinamente cortando recursos, não renovou os editais, dispensou supervisores e passou a atrasar o pagamento das bolsas.”

O médico explica que a escola cubana trabalha com foco na medicina preventiva, mas isso não impede que os profissionais tenham uma formação para tratar doenças de alta complexidade. “O diferencial é que, ao se preocupar em manter a população saudável, mesmo quando não há uma doença instalada, o cuidado tende a ser mais próximo.” Orente, que fez residência médica em Fortaleza, avalia que a formação em Cuba o tornou mais sensível a questões que por vezes passam despercebidas. “A gente tem o cuidado de saber quais são as frutas da estação, por exemplo. Não basta eu dizer a um paciente diabético que ele deve comer fruta. Se eu souber o que ele tem disponível em casa, e indicar as frutas mais baratas, com certeza o tratamento será recebido de outra forma.”

A ministra Trindade explica que a retomada do Mais Médicos só foi possível com a aprovação da Emenda da Transição, que recompôs o orçamento de programas esvaziados pelo governo anterior. “A ideia é reapresentarmos o projeto com incentivo, qualificação e formação. Nós temos uma Lei do Mais Médicos e vamos nos basear nela. Vamos estudar formas de maior incentivo aos médicos formados no Brasil, essa é a prioridade”, adiantou, em recente entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Para dar a largada, em janeiro o Tribunal Regional Federal da 1ª Região determinou que o governo federal recontratasse os médicos cubanos da 20ª turma, que tiveram seus contratos suspensos em 2018.

Vexame. Em 2013, os médicos brasileiros hostilizaram os colegas cubanos – Imagem: Jarbas Oliveira/Folhapress

Na avaliação do ex-ministro José Gomes Temporão, Bolsonaro deixou “um mar de problemas” e será preciso reconstruir a saúde brasileira, um trabalho para muitas mãos. “É preciso resgatar o papel de liderança do Ministério da Saúde na condução da Política Nacional da Saúde, reconstruir o pacto federativo, ou seja, trabalhar em conjunto com estados e municípios, porque isso se perdeu no governo passado”, avalia o médico sanitarista, hoje pesquisador da Fiocruz. “O Mais Médicos insere-se nesse contexto porque chega a cerca de 360 municípios no interior, além das periferias das re­giões metropolitanas, que estão sem assistência médica.”

Temporão defende ainda a ampliação do programa. “Na verdade, o Mais Médicos carece de uma visão mais ampla para incluir outros profissionais de saúde, porque o médico sozinho faz pouca coisa, então seria interessante incluir enfermeiros, farmacêuticos, odontólogos, psicólogos e outros profissionais que são centrais”, sugere. “O programa mostrou que a presença de profissionais da saúde nas regiões mais longínquas reduziu a mortalidade, melhorou a qualidade de vida e trouxe mais segurança às famílias. É estratégico no resgate da saúde pública.”

Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, vinculada à Fiocruz, Maria Helena Machado vê com bons olhos a retomada do Mais Médicos, mas alerta que a desassistência de saúde é estrutural em diversas regiões do País. “A saída dos médicos estrangeiros foi um problema que abalou muito uma estrutura muito carente. Claro que não é um programa que vai resolver todo o problema, mas o Mais Médicos mudou a realidade de localidades completamente desassistidas.”

Para Machado, que também atua na Associação Brasileira de Saúde Coletiva, o programa representou “um alívio emergencial”, mas é necessário pensar em soluções permanentes. “Cabe ao Estado afirmar que o SUS é um patrimônio da nação, e uma forma de fazer isso é estabelecer políticas capazes de manter o profissional protegido, com salário digno e carreira que dê a ele condições de optar por trabalhar no sistema público.”

O bolsonarizado Conselho Federal de Medicina renova a oposição ao exitoso programa

Apesar do enfraquecimento do Mais Médicos, muitos profissionais, inclusive cubanos, permaneceram no País. É o caso da médica Marucha Chávez ­González, especialista em Saúde da Família e Comunidade, que trabalha em Apucarana desde 2014. Formada em 2003, ela já havia trabalhado em missões internacionais no Haiti e na Guatemala e garante que os critérios do programa brasileiro são muito rigorosos. “Nós tínhamos de ter uma longa experiência profissional. Passamos por muitas etapas preparatórias em Cuba até que pudéssemos vir para o Brasil. Espalharam, porém, muitas fake news sobre o Mais Médicos. É mentira, por exemplo, que os médicos eram todos novatos. Eu realmente espero que, com a retomada do programa, as coisas aconteçam de um jeito diferente.”

A doutora González diz ter sido bem recebida tanto pela comunidade médica quanto pela população de Apucarana. “As pessoas notam que o nosso atendimento é diferente. Em Cuba, a formação é muito olho no olho, e nós trazemos isso para o Brasil. No meu consultório, a cadeira do paciente fica ao lado da minha, e não do outro lado da mesa. A consulta não é feita com pressa, eu pergunto como está a vida da pessoa, as relações familiares, porque tudo isso influencia no quadro de saúde.”

A cubana gostou da cidade para onde foi enviada, criou vínculos, constituiu família e decidiu não voltar a Cuba quando o programa parou de receber recursos. “Foi um erro interromper o Mais Médicos. O baque na saúde foi imediato, os indicadores atestam isso.” González continua clinicando porque revalidou o diploma. Hoje, ela trabalha tanto em Unidades Básicas de Saúde quanto no sistema particular. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Resgate bem-vindo”

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