Economia
Samba, sol e calote
O lobby empresarial joga pesado contra a tentativa do governo de acabar com o paraíso fiscal criado pelo ‘tribunal dos impostos’. Em jogo, 1 trilhão de reais


Fernando Haddad viajou na Quarta-Feira de Cinzas para a Índia, com o objetivo de participar, na sexta-feira 24, de uma reunião de ministros das Finanças do G-20, grupo que reúne as maiores economias do mundo. Dois anos atrás, o G-20 havia feito parte de um pacto internacional de 136 países em favor da cobrança mínima de 15% de Imposto de Renda das multinacionais, taxação que deve começar em 2024 em alguns lugares, a exemplo da União Europeia. O acordo é uma tentativa de impedir que, munidas de caros advogados, as grandes companhias tirem proveito das diferentes leis nacionais para pagar pouco ou nada de tributos. O desfalque causado aos cofres públicos com essas manobras afeta os cidadãos em geral. Há menos dinheiro para os governos bancarem professores, médicos, policiais, aposentadorias, seguro-desemprego, políticas públicas.
Aqui, Haddad está em guerra com as grandes empresas porque elas inventam (seus advogados, na verdade) argumentos e abusam das brechas legais para escapar do “Leão”. Em janeiro, ele convenceu o presidente Lula a baixar uma Medida Provisória para mudar algumas regras daquele tribunal que decide, fora e antes do Judiciário, litígios entre o Fisco e os contribuintes. Uma lei de 2020, nascida no escurinho do Congresso e sancionada por Jair Bolsonaro, reforçou nesse “tribunal”, o Carf, uma característica centenária dele, a hegemonia do poder empresarial. Esse Conselho Administrativo de Recursos Fiscais é uma jabuticaba: funciona de um jeito sem paralelo em canto algum do globo. Antes de 2020, a bolada em disputa era de 600 bilhões de reais. Agora, ultrapassa 1 trilhão, o dobro do que a Saúde, a Educação e o Bolsa Família terão juntos este ano.
Em 2020, o congresso mudou as regras do Carf em favor dos devedores. Agora, Haddad tenta acabar com a festa
É tanta grana que o lobby empresarial corre solto contra a MP 1160. É a maior batalha em Brasília na atualidade, a opor o governo e o presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP, e a envolver o Supremo Tribunal Federal. No Palácio do Planalto, há quem fareje o risco de Lula sofrer a primeira grande derrota no Congresso na votação da MP, cujo prazo de validade vai até 2 de abril. Essa medida ressuscitou o direito ao voto de minerva, em caso de empate, que os indicados do governo têm no Carf. Devolveu também ao governo o direito de recorrer ao Judiciário quando derrotado no Conselho. Os dois direitos tinham morrido com a lei de 2020. Nas contas de Haddad, o governo pode arrecadar até 50 bilhões neste ano com a MP e, a partir de 2024, 15 bilhões anuais.
O Carf tem 130 conselheiros. Metade é indicada pelo governo (em geral, auditores fiscais) e metade por cinco confederações patronais: do comércio (CNC), da indústria (CNI), dos bancos (CNIF), da agricultura (CNA), dos transportes (CNT) e da saúde (CNS). Desde que o Carf surgiu, em 1922, juntamente com a primeira lei brasileira do Imposto de Renda, o empresariado tem cadeira no “tribunal”. Não há nada igual no mundo. Um estudo publicado, em 2018, na revista britânica The Law Reviews sobre 27 países constatou que 24 tinham tribunais do tipo “Carf” compostos integralmente pelo Fisco. Em dois, Dinamarca e Finlândia, ele é independente do governo e até dá voz ao setor privado, mas não necessariamente a empresas, e podem ser acadêmicos. Somente a Noruega consulta indicados empresariais, mas com uma diferença em relação ao Brasil: a empresa primeiro paga o imposto que contesta, e só depois o Carf julga.
“Esse modelo não existe em lugar algum do mundo”, observa o presidente do Conselho – Imagem: Washington Costa/MF
Conforme o mesmo estudo, somente no Brasil a disputa tributária fora do Judiciário tem três instâncias. Esses litígios funcionam assim: o Fisco cobra um imposto e, se o contribuinte não aceita, a controvérsia é decidida por três auditores fiscais numa delegacia regional da Receita Federal. É a primeira instância. A segunda é o Carf, onde podem ocorrer até dois julgamentos, daí que na prática são três instâncias ao todo. Em 81% dos países pesquisados, há só uma instância. Em 19%, duas. Quanto mais instâncias, mais demora o desfecho. Um relatório da OCDE, grupo de nações ricas ou emergentes, sobre 55 países identificou que em 44 deles a decisão administrativa leva até um ano. Em dois, há prazo legal de até cinco. Nos demais, não há prazo. É a situação brasileira. Um processo aqui no Carf dura, em média, nove anos, conforme uma tese de mestrado de 2019 de um auditor fiscal aposentado, Ricardo Fagundes da Silveira.
O resumo da ópera até a Medida Provisória de janeiro era o seguinte: grandes empresas têm votos no Carf, este demora anos para decidir e, em caso de empate, a vitória era automática dos devedores e não podia ser revertida no Judiciário. “Esse modelo é um absurdo, não existe em nenhum país da OCDE, nenhum país avançado. Só nós estamos certos? Será que somos tão brilhantes assim?”, indaga o presidente do Carf, Carlos Higino Ribeiro de Alencar, auditor fiscal de carreira. Segundo ele, o desenho do Conselho favorece as grandes empresas, embora estas se escondam atrás das pequenas e médias, e também das pessoas físicas, nas críticas à MP. Do estoque de processos no Carf, diz Higino, 5% representam 200 bilhões dentro daquele 1 trilhão. Em 2022, 447 casos terminaram empatados, ou seja, em vitória dos devedores. Somaram 24 bilhões, dos quais 22 bilhões referiam-se a 26 empresas. Ou seja, o valor médio para cada firma era de 840 milhões. Entre os beneficiados figuram bancos, montadoras, mineradoras, empreiteiras.
“A questão do Carf foi decidida lá atrás”, afirma o presidente da Câmara – Imagem: Michel Jesus/Ag.Câmara
O desenho do Carf incentivou as grandes empresas, aquelas com grana para contratar advogados a peso de ouro, a apostar cada vez mais em “planejamento tributário agressivo”, pois a vitória no Conselho era certa. “O que interessa é analisar os grandes processos e, nestes, os contribuintes ganham todas”, afirma o advogado Márcio Calvet Neves, com mais de 20 anos de experiência em Direito Tributário Empresarial e, hoje, colaborador do Instituto de Justiça Fiscal. No ano passado, o instituto divulgou um documento em que diz que o Carf deveria acabar e ser substituído por um órgão sem “julgadores indicados por confederações empresariais”. “O Brasil escolheu alocar recursos em planejamento tributário muito agressivo de grandes empresas, em vez de usar em outras áreas, em políticas públicas”, reforça Neves.
“Planejamento tributário” é a invenção de argumentos com base em brechas legais com o objetivo de fugir de impostos. É a antessala da sonegação. É o que as multinacionais fazem e o G-20 quer inibir com a taxação mínima de 15%. No Carf virou uma festa. Alguns exemplos. Pela lei brasileira, uma companhia daqui tem de pagar Imposto de Renda em cima dos lucros de suas controladas no exterior. Algumas companhias fizeram arranjos para suas controladas terem sede em país com o qual o Brasil possui acordo contra bitributação. O Carf sem voto de minerva aceitou essa tese em alguns casos. Com a volta do voto de minerva, mudou de rota. No início do mês, impôs derrota de 5,7 bilhões de reais à Petrobras num caso do tipo. A estatal, aliás, é responsável por 100 bilhões no Carf.
Lira joga contra a MP editada pelo governo, que pode arrecadar até 50 bilhões de reais neste ano
Outro exemplo é chamado “ágio interno”. Grandes empresas começaram a promover arranjos societários e a descontar o custo desses arranjos daquilo que elas pagam de Imposto de Renda. Fazem isso com base numa lei do governo Fernando Henrique Cardoso que permitia o desconto quando uma empresa comprasse outra. Até o fim do voto de minerva, o Carf não abençoava o ágio interno em arranjos dentro de um conglomerado, em geral familiar. Em setembro de 2022, mudou de posição, a partir de um processo de 280 milhões de reais referente a um supermercado de Santa Catarina, o Angeloni. Em fevereiro, o Carf voltou atrás graças ao voto de minerva, em um processo de interesse de uma grande firma de tabaco, a Alliance One.
Outro caso em que o Carf sem voto de minerva deu ganho a uma empresa a partir de tese empresarial abusiva é sobre o direito que uma firma tem de descontar do Imposto de Renda seus prejuízos fiscais. Esse desconto é admitido por uma lei de 1995, assinada por FHC, mas limitado a 30% do prejuízo. Algumas companhias têm comprado firmas com enormes prejuízos fiscais e em estado falimentar para descontar não 30%, mas 100%, e assim pagarem menos Imposto de Renda. Em 2020, o Superior Tribunal de Justiça votou contra essa manobra. Foi ao julgar um caso da Editora Abril. Em 2007, a Abril havia comprado a emissora TVA e queria descontar do Imposto de Renda todos os prejuízos fiscais da TVA. O STJ proibiu: só podia abater até 30%. O Carf sem voto de minerva não quis nem saber. Em outros casos, que não o da Abril, abençoou o desconto de 100%. E o governo não podia recorrer ao Judiciário.
Hildo Rocha, do MDB, é o mentor da artimanha. Camargo faz lobby contra o voto de minerva – Imagem: Redes sociais e MDB Nacional
O Carf do “empate pró-devedor” contrariou não só o STJ, como também a Suprema Corte. Em cena, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. A CSLL foi criada pela Constituição de 1988 e, no ano seguinte, várias empresas foram à Justiça contestá-la. Logo algumas ganharam o direito de não pagar. Em 2007, o Supremo Tribunal Federal validou a CSLL, mas algumas companhias resolveram criar um imbróglio: as decisões favoráveis a elas não teriam caráter perpétuo? Se não tivessem, a partir de quando exatamente a CSLL teria de ser paga? Em 2021, o Carf endossou o não pagamento da contribuição por essas empresas. Foi necessária uma nova decisão do STF, do início de fevereiro deste ano, para afastar qualquer espaço para as empresas não pagarem.
Como os advogados tributaristas e suas teses são personagens fundamentais do paraíso fiscal no Carf, a reação patronal contra a Medida Provisória de Lula tem a Ordem dos Advogados do Brasil como peça-chave. A entidade funciona como ponta de lança empresarial. Grandes escritórios especializados em legislação tributária, como Bichara Advogados e Mattos Filho, estão a serviço das companhias em troca de gordos honorários. A OAB havia entrado pela primeira vez em campo a favor dos devedores em 2017. Queria derrubar no Supremo o voto de minerva garantido numa lei de 2009, assinada por Lula. Foi arquivada logo após a aprovação da lei de 2020, que reverteu aquela de 11 anos antes. Tinha perdido sentido julgá-la.
No poder, FHC facilitou a vida dos grandes devedores da União – Imagem: Evaristo Sá/AFP
Após o atual governo ressuscitar o voto de minerva, a OAB foi de novo ao STF contra a regra. E pedia liminar. O juiz Dias Toffoli, que cuida da ação, não tinha dado até a conclusão desta reportagem, na quinta-feira 23. Várias empresas haviam recorrido aos tribunais, por conta própria, com mandado de segurança para proibir o Carf de usar o voto de minerva em seus processos. Ao comentar na Folha de S.Paulo essas iniciativas, o advogado Luiz Gustavo Bichara disse que o Carf deveria esperar até o Congresso decidir o assunto. Bichara era um dos nomes na ação de 2017 da OAB contra o voto de minerva. Tinha assinado o documento na condição de procurador especial tributário da entidade. Hoje é advogado de firma com ação na Justiça e processo no Carf, em favor, por exemplo, da InterCement.
A recente ação da OAB obrigou Haddad a negociar um acordo com a entidade. A OAB desistirá da ação, pois o ministro topou que as empresas que perderam no Carf graças ao voto de minerva sejam liberadas de multas e juros. Um dos proponentes dos termos do acordo era o empresário João Camargo, da CNN Brasil e da 89 Investimentos, que comanda o think tank patronal Esfera Brasil. A entidade fez lobby desde o primeiro dia contra a volta do voto de minerva, através, por exemplo, de uma carta a Arthur Lira, o presidente da Câmara. O acordo de Haddad e do presidente da OAB, Beto Simonetti, foi selado diante de Dias Toffoli, em 14 de fevereiro. O ministro da Fazenda espera que o combinado seja levado em conta pelo Congresso na votação da MP 1160. Antes de validar o acordo, Toffoli submeteu-o à Procuradoria-Geral da República. Em 2020, a Procuradoria, o PSB e a Anfip, associação dos auditores fiscais, tinham entrado no Supremo com ações para salvar o voto de minerva em 2020. As ações começaram a ser examinadas em março do ano passado, mas o tribunal suspendeu a análise.
O “empate pró-contribuinte” virou lei em abril de 2020, por obra do Congresso. O enredo começa com uma Medida Provisória baixada por Bolsonaro em outubro do ano anterior, que dava respaldo legal a servidores públicos para negociar dívidas tributárias de empresas e cidadãos. Na votação da MP na Câmara, em 18 de março de 2020, o deputado Hildo Rocha, do MDB do Maranhão, emplacou no texto a proposta de que, em caso de empate em julgamentos no Carf, o devedor ganharia. Arthur Lira era o líder do tal “Centrão” e cobrou do governo a promessa de não vetar a proposta. O deputado Major Vitor Hugo, do PL de Goiás, era o líder do governo e telefonou para Bolsonaro. Disse em seguida que havia obtido “compromisso de sanção”.
A Operação Zelotes revelou um comércio de votos e sentenças no Carf
Parlamentares patrões ou a serviço de empresas já tinham tentado acabar com o voto de minerva no Carf. Haviam apresentado leis com esse objetivo, por exemplo, os deputados Carlos Bezerra (em 2016), de Mato Grosso, e Newton Cardoso Jr. (em 2018), de Minas Gerais, e o senador suplente Luiz Pastores (em 2019), do Espírito Santo. Todos do MDB, aliás. Pastores é um empresário rico. Tinha 453 milhões de reais no ano passado, conforme declarou à Justiça Eleitoral ao concorrer a suplente de senador pelo Distrito Federal. É um sujeito obscuro que ficou famoso ao pagar 50 mil dólares para beijar uma modelo inglesa, Kate Moss, em 2013. Outro ex-senador empresário e milionário, o tucano Tasso Jereissati, propôs, em 28 de março de 2020, quatro dias após o Senado aprovar o fim do voto de minerva no Carf, um projeto com a mesma finalidade. Será que duvidava do acordo celebrado por Lira e Vitor Hugo na Câmara?
Lira não está nem aí para outro acordo, aquele fechado por Haddad e a OAB no Supremo. Ele é da escola “Eduardo Cunha de lobby empresarial”. Em 15 de fevereiro, um dia após o ministro da Fazenda ter ido ao STF, o presidente da Câmara participou de um evento do banco BTG e disse que o Parlamento “não vai se fiar por um acordo que aconteceu fora”. Mais: que “o Congresso tem de buscar alguma alternativa para que não haja empate” no Carf. Na semana anterior, Haddad havia se reunido com alguns deputados para tratar do assunto, e em seguida Lira mostrara as garras: “A questão do Carf foi decidida lá atrás no Congresso, quando tinha alguns excessos. Voltou-se a uma forma que também não está atendendo”. Por “não está atendendo”, leia-se “as grandes empresas não querem”.
Simonetti, presidente da OAB, costurou um acordo para livrar as empresas derrotadas com o voto de minerva do pagamento de multas e juros. Bichara espera que o Congresso mantenha a farra – Imagem: Rosinei Coutinho/STF e OAB/RS
Lira é do PP, partido que, ao lado do Republicanos, ambos bolsonaristas na eleição, entrou no Supremo com uma ação contra o voto de minerva. O PP foi estrela de um escândalo no Carf em 2015. O Conselho, segundo revelado por policiais federais e procuradores na Operação Zelotes, tinha comércio de votos e sentenças. Em 70 processos de interesse de bancos, montadoras e siderúrgicas, o esquema teria surrupiado 19 bilhões aos cofres públicos. Parlamentares do PP seriam facilitadores do esquema, em troca de suborno. Um dos alvos das investigações era um membro do Carf, Maurício Rebelo de Albuquerque e Silva, pai do líder da bancada do PP na Câmara naquele momento, Eduardo da Fonte. Outro nome a despontar foi o do ex-deputado pepista Augusto Nardes, acusado pela Zelotes à Justiça em 2018.
Nardes é desde 2005 ministro do Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Congresso na vigilância do governo. Em março de 2021, o TCU finalizou uma auditoria sobre o Carf, motivada pelo enorme valor em disputa em 2019, 600 bilhões de reais, e pela demora nas decisões. Uma de suas conclusões foi que o fim do voto de minerva tinha aumentado o “risco de corrupção no Carf”. Dá para imaginar por quê. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Samba, sol e calote”
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