Política
Reforço à vista
O benefício é a única fonte de renda segura da diarista Valquíria Maria, mãe de Luiz Fernando, de 10 anos


“Antes eu recebia 160 reais, depois o auxílio aumentou na pandemia e, agora, com 600 reais, a gente consegue se manter. Estou sem trabalhar há muito tempo e meu marido faz bicos. É com o Bolsa Família que fazemos uma feirinha para dar de comer às nossas duas filhas.” A declaração é de Glaiziane Bernardo, beneficiária do programa há 15 anos, mãe de Luana, de 5 anos, e de Mickaely, de 15. Ela não vê a hora de receber o acréscimo de 150 reais no valor do benefício a partir de março, quando o governo começa a pagar a diferença para as famílias com filhos menores de 6 anos. Moradora da periferia no município de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, Glaiziane tem no Bolsa Família a única renda fixa da casa.
A realidade desta brasileira não é muito diferente daquela vivenciada por Juliana Santos ou pela diarista Valquíria Maria. Ambas têm no programa a sua principal fonte de renda. “Eu me viro como posso, trabalho com reciclagem, mas não é nada fixo. O certo é o que recebo do Bolsa Família”, diz Juliana, moradora de Fortaleza e mãe de três filhos com idades entre 7 e 12 anos. “Sem esse benefício, nem sei como a gente estaria”, acrescenta Valquíria Maria, beneficiária do programa há 14 anos e mãe de Luiz Fernando, de 10 anos. As duas recebem o auxílio de 600 reais, mas não terão direito ao valor extra de 150 reais porque seus filhos estão acima da idade estabelecida.
Depois de ter sido desfigurado e rebatizado pelo governo Bolsonaro, o Bolsa Família deve ser relançado em 28 de fevereiro pelo presidente Lula, por meio de uma Medida Provisória, quando voltará a ser chamado pelo nome original e trará como novidade o acréscimo de 150 reais por filho menor de 6 anos, valor que começa a ser pago a partir do calendário de março. Para receber o benefício, é necessário ter renda per capita abaixo de 120 reais e que as crianças estejam matriculadas na escola e com o cartão de vacinação em dia. O novo programa tem como ponto central a renda familiar, e não individual, como era o Auxílio Brasil, criado na gestão de João Roma no Ministério da Cidadania. O Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome está concluindo um estudo técnico para apresentar a Lula a formatação final.
O governo vai pagar 150 reais a mais para cada criança de até 6 anos, vacinada e na escola
Os dois primeiros meses do governo foram dedicados a elaborar um plano para ressuscitar o Cadastro Único (CadÚnico), desmantelado pelo governo passado. “Ele é a base, o cérebro para que a gente tenha as políticas voltadas para as pessoas de todas as idades, desde a gestação até a idade adulta, e garantir políticas destinadas a cada situação, da família, do município, dos estados, e apresentar uma proposta que possa trabalhar de forma integrada com o Ministério da Saúde, Casa Civil, Fazenda, mulheres, indígenas, enfim, áreas para que a gente possa ter uma proposta consistente e que garanta a proteção social”, explica Wellington Dias, ministro de Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome. No início de fevereiro, Dias reuniu-se com representantes das prefeituras municipais, dos governos estaduais e com o Conselho Nacional de Assistência Social, para discutir ações de reestruturação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e a repactuação da Comissão Intergestores Tripartite.
Na quarta-feira 15, o Ministério publicou uma portaria institucionalizando a repactuação e um acordo assinado junto à Defensoria Pública da União e à Advocacia-Geral da União, a prever a elaboração de um plano de trabalho para o fortalecimento do CadÚnico e da Rede SUAS. O acordo com a DPU e a AGU suspende uma ação de 2020 existente contra o governo federal, a questionar a paralisação das atividades de cadastramento e atualização do CadÚnico durante a pandemia de Covid-19, a desestruturação da rede descentralizada de atendimento às famílias no SUAS, a falta de articulação federativa e de orientação aos municípios e à sociedade, bem como o aumento do número de cadastros com divergência de renda e desatualizados. Problemas em série legados do ex-capitão.
Cooperação. Wellington Dias se reuniu com gestores municipais e estaduais para discutir a reestruturação do SUAS – Imagem: Roberta Aline/MDS
Dentro do acordo de cooperação, o Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome vai repassar cerca de 200 milhões de reais a estados e municípios, para a reestruturação da Rede SUAS, através da operação denominada Busca Ativa. O recurso vai municiar, entre os meses de março e abril deste ano, o trabalho de pente-fino que o Ministério pretende fazer no CadÚnico, para retirar pessoas cadastradas de forma irregular e incluir aqueles que precisam e estão de fora dos mais de 30 programas sociais disponíveis, dentre eles o Bolsa Família. Neste primeiro momento, o governo pretende alcançar quem vive em condição de extrema vulnerabilidade, mas ainda não recebe qualquer benefício, como pessoas em situação de rua, povos indígenas e crianças submetidas ao trabalho. O levantamento será feito por assistentes sociais capacitadas pelo SUAS.
“Sem dúvida, a principal mudança no novo modelo do programa diz respeito ao retorno da articulação entre a política de assistência social, saúde e educação, algo que inexistia no Auxílio Brasil. O Bolsa Família traz de volta o princípio da intersetorialidade no Sistema Único de Assistência Social. Garantir que as crianças estejam na escola, com o acompanhamento de saúde em dia, vai estabelecer a ideia de proteção social como dever do Estado e não somente como competência de uma única política pública”, salienta Priscila Cordeiro, do Conselho Federal de Assistência Social. Ela cita a importância da reestruturação do CadÚnico. “É uma base de dados que traz diagnósticos importantes sobre a realidade da pobreza e subsidia a construção de políticas públicas. O governo anterior deslegitimava o CadÚnico, tornando-o um aplicativo distante da vida dos usuários.”
Com a volta do CadÚnico, será possível anular os benefícios indevidos e incluir quem precisa
A operação Busca Ativa vai mirar também as pessoas com renda acima da média inscrita no Bolsa Família. Tal irregularidade foi facilitada pela brecha existente no formato estabelecido pelo Auxílio Brasil, que utilizava um aplicativo sem muito critério para o cadastramento. “O objetivo é abrir a porta e dar as mãos aos mais pobres, incluir quem está de fora e excluir quem está recebendo irregularmente. Essas pessoas serão mapeadas e entrevistadas. Vamos entender o contexto de cada caso e fazer os encaminhamentos adequados”, esclarece Dias. Dados do Ministério com base nos registros do aplicativo mostram um crescimento considerável dos cadastros unipessoais, que é quando uma pessoa se cadastra individualmente. Isso, porque o Auxílio Brasil não considerava a composição familiar, abrindo a possibilidade para que pessoas da mesma família recebessem o benefício.
Entre dezembro de 2020 e dezembro de 2022, o número de famílias contempladas pelo programa aumentou de 14 milhões para 22 de milhões. Também chama atenção a quantidade de pessoas que afirmaram morar sozinhas. Entre dezembro de 2019 e dezembro de 2022, esse contingente cresceu 224%. A expectativa é de que, até o fim do ano, pelo menos 5 milhões de famílias que se dizem unipessoais inscritas no programa de transferência de renda terão seus cadastros revisados. O cruzamento de dados feito pelo governo federal identificou pessoas com renda acima de 9 mil reais inscritas no programa, ocupando o lugar de quem realmente precisa.
Além dos 200 milhões de reais destinados à reestruturação do CadÚnico, o governo federal deve liberar este ano outros 2,2 bilhões de cofinanciamento para estados e municípios, para subsidiar a Rede SUAS e fortalecer os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centro Pop) e outras unidades que atendem na ponta o público-alvo das políticas sociais. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Reforço à vista”
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