Entrevistas
A ilegalidade é insustentável
O garimpo predatório pode ser substituído por uma mineração em prol dos povos indígenas, diz geóloga


Em meio à crise humanitária vivida pelo povo Yanomâmi, um grupo de seis pesquisadoras, algumas delas indígenas, acaba de lançar o livro Mineração em Terras Indígenas – Desenvolvimento para Quem?. Com base em dados da Agência Nacional de Mineração, a publicação revela que muitos dos requerimentos de pesquisa e exploração minerária em tramitação no órgão desde os anos 1960 estão sobrepostos ou no limite das TIs.
Em entrevista a CartaCapital, uma das autoras do livro, Suzi Huff Theodoro, professora da UnB e diretora da Federação Brasileira dos Geólogos (Febrageo), repudia o garimpo predatório, mas diz ser possível regulamentar a mineração nesses territórios, com regras para preservar não só o meio ambiente, mas a cultura e a ancestralidade dos indígenas.
CartaCapital: Como surgiu o livro?
Suzi Huff Theodoro: O projeto surgiu no começo da pandemia, quando questionávamos sobre qual a posição da Febrageo a respeito da mineração em terras indígenas. Reunimos um grupo de pessoas de diferentes perfis, desde quem é a favor do garimpo até quem é totalmente contra, e elaboramos um relatório apresentado à diretoria da entidade. Nem todo processo minerário é garimpo. Não somos contra mineração de modo geral, mas acreditamos que a exploração em áreas demarcadas não está amparada pela lei. O Brasil tem uma área total de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e somente 14% desse território é ocupado por indígenas. Muitos pedidos minerários extrapolam o limite da área indígena, contrariando uma determinação do Ministério Público. Essa sobreposição soma 50 mil quilômetros quadrados, o equivalente a 4% da extensão territorial destinada aos indígenas. A gente não chegou a considerar o garimpo ilegal e predatório no livro, porque os dados sequer estão na base do governo. O garimpo é contravenção mesmo. Na obra, a gente fala de mineração legal.
CC: Quais minérios despertam maior interesse das empresas?
SHT: Em primeiro lugar, o ouro. Depois, vem a cassiterita, de onde é extraído o estanho. Onde tem ouro tem estanho. A gente quer mostrar aos nossos alunos que eles devem ter uma vivência com as comunidades indígenas para mudar a forma de enxergar a Geologia. Muito daquilo que é recurso para a sociedade não indígena é de grande valor para os povos originários, tem a ver com a ancestralidade, cultura, religião. Os futuros profissionais precisam ter essa conexão. Existem iniciativas de exploração mineral das próprias comunidades, que podem, por exemplo, produzir biojoias ou ativos a serem comercializados com valor agregado das culturas indígenas. Os povos originários precisam definir qual é o destino que eles querem dar a esses recursos e a Constituição prevê isso. Se os indígenas acham que que é possível fazer isso, que esses recursos podem trazer desenvolvimento dentro daquilo que entendem, então eles poderiam fazer.
CC: Quais são as TIs mais ameaçadas pela mineração?
SHT: Das cinco regiões brasileiras, aquela que possui o maior número de terras indígenas é a Norte, com um total de 295, sendo 255 regularizadas, 22 declaradas, seis delimitadas, seis encaminhadas para Reserva Indígena, cinco em estudo e duas homologadas. Essa região também concentra a maior parte das sobreposições dos processos minerais, em diferentes fases de análise na ANM. Ao menos 1.885 processos encontram-se em interseção com TIs. Desse total, 1.357 (72%) referem-se a requerimentos de pesquisa e a maior parte ocorre em áreas nos estados de Roraima (699), Pará (580), Amazonas (353) e Rondônia (220). Dos requerimentos protocolados na ANM, 42% referem-se à exploração de ouro. Na sequência, vem cassiterita (12%), cobre (6%), tântalo (4%), potássio (3%), alumínio (3%), diamante (2%), columbita (2%) e manganês (2%).
CC: Existe um caminho possível que concilie exploração e preservação?
SHT: Quem vai decidir o que fazer com esses recursos deve ser o governo brasileiro, o serviço geológico do Brasil, em parceria com universidades que estejam na região e que tenham conhecimento e vivência com as comunidades envolvidas. O minério tem valores culturais, sociais que não são econômicos e existem alternativas da própria exploração quando há consenso e os benefícios para os indígenas sejam dentro daquilo que eles esperam. O que achamos impossível é admitir a exploração via garimpo sem regra alguma. Quando não é legal, não tem a quem cobrar. Não podemos demonizar a mineração, mas também não se pode permitir que a mineração seja conduzida como vem sendo há 500 anos no Brasil, a partir dos interesses de uma elite brasileira e do mercado da geopolítica internacional, que quer ter acesso às reservas de mercadorias, especialmente metais como ouro ou o ferro. Existe a possibilidade de o País se desenvolver com a mineração, mas com regras. É preciso contemplar quem está diretamente impactado pela atividade. A sociedade brasileira precisa discutir isso. Outro ponto é a rastreabilidade do ouro do garimpo ilegal. É muito difícil saber a assinatura, a química do ouro, dizer de onde ele foi extraído. Como ele é um metal dissolvido, sobretudo com o mercúrio, muitas das características geológicas são perdidas. Tem de haver outros mecanismos de rastreabilidade.
CC: Como enfrentar a atual crise do garimpo ilegal nas TIs?
SHT: Como qualquer atividade ilegal, ela deve ser combatida nos termos da lei. Desintrusão da população garimpeira, identificação da cadeia de apoio, financiamento e logística de venda dos minérios, em especial ouro e cassiterita, com punição, sequestro de bens dos financiadores e privação da liberdade. Mas é preciso oferecer alternativas socioeconômicas para esse contingente de trabalhadores com pouca qualificação, sem acesso a emprego, educação ou saúde. Muitos estão no limite entre morrer ou morrer. O garimpo é, talvez, a última esperança de garantir a sobrevivência, caso encontrem o minério e consigam repassá-lo. A sociedade como um todo e o Estado em particular precisam entender que eles mesmos geram essa massa humana que não tem mais quase nada a perder. A falta de oportunidades alimenta o garimpo e o mercado predatório os absorve de forma criminosa. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A ilegalidade é insustentável “
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.