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Jogo de cena?

O plano de paz para a Ucrânia proposto pela China é recebido com ceticismo pela diplomacia ocidental

Jogo de cena?
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Um freio à Otan. Wang Yi defende a integridade territorial da nação invadida, mas pede respeito aos “legítimos interesses” de segurança da Rússia - Imagem: Odd Andersen/AFP
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Líderes ocidentais reagiram com nervosismo a um plano de paz chinês para a Ucrânia, mas aprovaram cautelosamente a medida como um primeiro sinal de que a China reconhece que a guerra não pode ser considerada apenas um assunto europeu. Falando na Conferência de Segurança de Munique, o principal diplomata chinês, Wang Yi, um dos poucos políticos externos capazes de influenciar a Rússia, anunciou que seu país apresentaria sua iniciativa de paz no aniversário da guerra e já teria consultado Alemanha, Itália e França sobre as suas propostas.

O plano de paz enfatizaria a necessidade de defender os princípios de soberania, integridade territorial e a Carta da ONU. Ao mesmo tempo, emendou Wang Yi, os legítimos interesses de segurança da Rússia devem ser respeitados. Diplomatas europeus não sabem ao certo quão específica Pequim pretende ser, ou se o plano se resume a discursos sobre soluções pacíficas que às vezes caracterizam a postura chinesa. Um movimento para retratar o Ocidente como belicista pode encontrar ecos no Sul global.

“Como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, a China tem a obrigação de usar sua influência para garantir a paz mundial”, saudou ­Annalena Baerbock, ministra das Relações Exteriores da Alemanha. Ela disse que conversou intensamente com Wang Yi, na sexta-feira 17, sobre “o que significa uma paz justa”, sem recompensas ao agressor, e em “defesa do direito internacional e dos que foram atacados”.

A mesma mensagem foi transmitida à China por diplomatas franceses e italianos. Baerbock enfatizou que uma paz justa pressupõe “que aquele que violou a integridade territorial, nomeadamente a Rússia, retire suas tropas do país ocupado”. Ao mesmo tempo, acrescenta a ministra alemã, “todas as possibilidades” de buscar a paz devem ser tentadas.

Baerbock insiste que, sem uma retirada completa de todas as tropas russas da Ucrânia, não há chance de acabar com a guerra. Segundo a ministra, todas as alternativas com concessões territoriais à Rússia são inaceitáveis. “Significaria deixar a população (ucraniana) como presa da Rússia. Não faremos isso.”

A China sabe, porém, que há uma plateia pronta em todo o Sul global se fizer um apelo ao diálogo e à paz. O chanceler brasileiro, Mauro Vieira, insistiu que seu país condenou a agressão da Rússia­ inclusive na ONU, mas acrescentou: “Temos de tentar possibilitar uma solução. Não podemos nos limitar a falar sobre a guerra. Não estou me referindo a negociações imediatas – tería­mos de ir passo a passo, talvez primeiro criar um ambiente que torne possível uma negociação”.

O primeiro-ministro da Namíbia,­ ­Saara Kuugongelwa, acrescentou: “Queremos resolver o problema, não queremos encontrar o culpado. Não adianta a Rússia gastar dinheiro em armas e o Ocidente financiar a Ucrânia para também comprar armas”.

Há quem veja uma mera manobra para retratar as potências ocidentais como belicosas e pouco abertas ao diálogo

Algumas potências ocidentais consideram a possibilidade de pressionar por uma nova resolução da Assembleia-Geral da ONU que apoie a Ucrânia, na esperança de que uma votação favorável esmagadora saliente a falta de apoio internacional da Rússia. Mas, se uma votação no ano passado teve 141 nações em apoio à Ucrânia, não está claro quantos novos convertidos existem no Sul global.

Uma fonte disse que a Ucrânia, compreensivelmente, deseja palavras duras específicas nessas resoluções, mas quanto mais específica for a resolução, maior a probabilidade de que os países recuem para a neutralidade.

Na conferência de Munique, diversos líderes europeus, incluindo o presidente francês, Emmanuel Macron, admitiram que o Ocidente deveria ter feito mais para convencer o Sul de que seu forte apoio à Ucrânia não nasceu de critérios duplos. “Estou impressionado com a forma como perdemos a confiança do Sul global”, disse Macron. Ele argumentou que a resposta do mundo à guerra mostrou a necessidade de reequilibrar a ordem global e tornar suas instituições mais inclusivas.

Macron chamou a invasão da Ucrânia pela Rússia de um ataque “neocolonialista e imperialista” que “quebrou todos os tabus”, e alertou que os espectadores eram cúmplices da agressão russa.

O premier britânico, Rishi Sunak, também admitiu que o Ocidente deveria ter feito mais para convencer o Sul global de que os preços dos alimentos dispararam, devido ao bombardeio da Rússia aos campos de trigo ucranianos, e não às sanções ocidentais. Kamala Harris, vice-presidente dos EUA, que condenou os crimes da Rússia contra a humanidade, disse que a solução para as dúvidas do Sul global é tratá-los como parceiros.

Já o chanceler alemão, Olaf Scholz, que viajou recentemente ao Brasil e à África do Sul numa tentativa infrutífera de extrair condenações mais claras à Rússia, afirmou: “Para ser verossímil e conseguir algo como europeu ou norte-americano em Jacarta, Nova­ ­Délhi, Pretória, Santiago do Chile, Brasília ou Cingapura, não basta invocar valores comuns”.

As preocupações com o Sul não desviaram a atenção dos líderes europeus de como aumentar rapidamente a produção de munição por meio de mais aquisições conjuntas e incentivos financeiros para a indústria de armas europeia. A crescente escassez de armamento é tema de intenso debate entre os países da União Europeia. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Jogo de cena?”

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