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Primavera sem flores

A minoria árabe foi excluída da frente de oposição contra as reformas judiciais do premier israelense Netanyahu

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Resistência. Em Jerusalém, mais de 100 mil manifestantes marcharam contra a iniciativa da coalizão de extrema-direita - Imagem: Ahmad Gharabli/AFP
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Enquanto a luz amainava e dezenas de milhares de manifestantes voltavam do Parlamento, o Knesset, para a estação ferroviária de Jerusalém na semana passada, o clima era de cansaço, mas determinação. O premier de Israel, Benjamin Netanyahu, recém-reeleito, está habituado a protestos por sua renúncia. Mas o movimento iniciado há dois meses contra os planos de sua coalizão de extrema-direita de reformar o sistema judicial não se parece com os já enfrentados – ou com qualquer outro na história do país.

A “primavera israelense”, como os comentaristas começam a chamá-la, é uma rara demonstração de união em uma sociedade que costuma ser profundamente polarizada. Temendo que as mudanças, a restringir o poder da Suprema Corte, levem Israel por um caminho autoritário semelhante ao da Turquia e da Hungria nos últimos anos, mais de 100 mil habitantes têm ido às ruas nas noites de sábado em cidades de todo o país para expressar sua oposição. Desde a semana passada, protestos também estão ocorrendo diante do Parlamento de Israel, e vários setores realizaram greves.

Até mesmo segmentos sem o hábito de se envolver publicamente em política – executivos de alta tecnologia, banqueiros e figuras do establishment, como militares da reserva e oficiais de inteligência – marcaram presença nos atos e estão forçando o governo a escutar. Algumas votações foram adiadas durante uma semana, em consequência da pressão pública, e a mídia israelense informou na sexta-feira 17 que o gabinete de Netanyahu iniciou conversas fechadas para avaliar compromissos.

Mas a rebelião de centro-esquerda contra o que é considerado um golpe de extremistas de direita tem uma falha demográfica: os palestinos israelenses, que representam um quinto da população, estão visivelmente ausentes dos protestos, apesar de o novo governo ser fervorosamente antiárabe e a comunidade ser a mais atingida pelas reformas judiciais. A Cisjordânia segue agitada após um ano de aumento da violência.

Para a maioria dos manifestantes, o destino do Judiciário e o controle de Israel sobre os palestinos são questões separadas, mas para os cidadãos palestinos de Israel e os ativistas contra a ocupação o caráter democrático do país é questionado há muito tempo. Pequenos grupos de manifestantes antiocupação marcharam na maioria dos protestos, mas a recusa às bandeiras palestinas no palco nas manifestações em Tel-Aviv e o fato de apenas dois oradores palestinos israe­lenses se dirigirem à multidão até agora deixaram muitos se sentindo alienados do movimento antigoverno.

Os palestinos israelenses, que representam um quinto do povo, estão visivelmente ausentes dos atos

Alguns políticos proeminentes de direita, ex-policiais e oficiais do exército não fariam discursos se tivessem de dividir o palco com vozes pró-palestinas, e os organizadores dizem que os protestos devem se concentrar no tema, para não perderem seu amplo apoio. Na semana passada, um primeiro protesto ocorreu em Efrat, assentamento israelense ilegal perto de Belém. “A suposição central que sustenta esses protestos é que o sistema judicial funciona bem como está. Pode precisar de ajustes, mas consegue equilibrar as tensões na relação entre a natureza judaica e a natureza democrática do Estado”, disse Abed Shehadeh, ativista político e membro do conselho da cidade de Jaffa, afastado dos atos semanais. “O que acontece na Cisjordânia e em Gaza repercute para nós de forma diferente. Os manifestantes não percebem essas mudanças como um desenvolvimento lógico numa sociedade que sistematicamente oprime os outros.”

Netanyahu voltou ao cargo em dezembro, após quatro anos de turbulência eleitoral provocada por seu julgamento por corrupção, ainda em curso, no qual ele nega todas as acusações. No sistema político israelense, é necessário construir coalizões para governar. Sem opções depois de trair ex-parceiros, o líder conservador do partido Likud encorajou um grupo heterogêneo de extremistas de direita a se fundir numa chapa chamada Sionistas Religiosos, para conseguir superar o limiar eleitoral e dar a Netanyahu outro mandato.

A aliança assegurou 64 dos 120 assentos no Knesset. Olhando de outro ângulo, porém, a eleição foi vencida por apenas 30 mil votos – um mandato escasso para um governo com uma agenda tão radical. Os Sionistas Religiosos, terceiro maior partido no Parlamento, querem dar aos políticos maior controle sobre a nomeação dos juízes da Suprema Corte e permitir que uma maioria parlamentar simples anule quase todas as decisões da corte. Eles dizem que essas medidas equilibrarão melhor os diferentes braços do governo e impedirão um suposto ­viés de esquerda nas decisões do tribunal.

Susto. O premier jamais enfrentou uma oposição tão forte e ruidosa – Imagem: Ohad Zwigenberg/AFP

A Suprema Corte de Israel atualmente desempenha um papel descomunal em um país sem Constituição formal ou segunda câmara legislativa: o Canadá é o único outro país no mundo com uma cláusula de anulação parlamentar para decisões da Suprema Corte – mas tem uma Constituição formal. Embora ­Netanyahu pareça detestar seus novos colegas e as reformas judiciais tenham pouco apoio público, a novidade provavelmente o ajudaria a se livrar das acusações em seu julgamento por corrupção.

Outros itens na lista dos sionistas religiosos incluem anexar a Cisjordânia ocupada, fortalecer a lei religiosa tradicional, limitar a liberdade de expressão e reverter os direitos das mulheres e das comunidades gay e árabe. A maioria dos manifestantes está preocupada com a possibilidade de alteração de normas liberais. Outros apontam que elas só foram aplicadas seletivamente, em primeiro lugar.

Em 2021, a Suprema Corte manteve a muito criticada lei do Estado-Nação de 2018, que declarou que “o direito de exercer a autodeterminação nacional” em Israel é “exclusivo do povo judeu”, definindo efetivamente os palestinos israelenses como cidadãos de segunda classe. No ano passado, os juízes – um dos quais é colono – determinaram que mil palestinos poderiam ser despejados de suas casas na Cisjordânia, para dar lugar a uma zona de treinamento do exército. A decisão rejeitou explicitamente o princípio de que o direito internacional é “consuetudinário e obrigatório”.

“Não irei a um protesto em Tel-Aviv onde há militares no palco, dizendo que devemos lutar contra as reformas judiciais porque, senão, a comunidade internacional terá motivos para enviar o nosso povo ao Tribunal Penal Internacional. O foco deveria estar em não cometer crimes de guerra, para começar”, comenta o jornalista Orly Noy, de Jerusalém, envolvido com várias iniciativas de esquerda da sociedade civil. “Não posso me manifestar para proteger a situação atual. Existem outras formas de resistir e lutar.”

Com a reforma, Netanyahu talvez consiga se livrar das acusações de corrupção em seu julgamento

O movimento, em grande parte sem liderança, deve decidir se deseja tomar medidas mais drásticas, além de protestos e greves, e se o seu objetivo geral é suspender as reformas judiciais ou derrubar o governo de Netanyahu completamente. Políticos palestinos israelenses e líderes comunitários estão pedindo aos cidadãos árabes que se envolvam mais.

As manifestações têm sido quase totalmente pacíficas até agora, mas pequenos grupos de manifestantes pró-governo começaram a surgir na última semana, aumentando a possibilidade de violência – um cenário para o qual o presidente de Israel, Isaac Herzog, alertou ao pedir diálogo para evitar um “colapso constitucional”.

“Tenho muito respeito pelas ­pessoas que protestam, entendo perfeitamente por que as pessoas estão nas ruas”, disse Israel Frei, jornalista ultraortodoxo de Tel-Aviv que recentemente foi demitido de seu emprego por seu apoio ao povo palestino, segundo relatou. Frei não participou pessoalmente das manifestações, embora tenha atuado como repórter. “O que falta para mim é um objetivo, uma visão. Não basta ser reativo, fazer campanha com base na negação de algo. Se este movimento realmente quer unir as pessoas que vivem neste país, precisa nos oferecer algo”, afirmou. “Mostre-nos como seria a verdadeira igualdade e um futuro melhor.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Primavera sem flores”

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