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Pesquisa inédita revela um péssimo prognóstico para o avanço da agenda feminista no Congresso

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Hegemonia. Nem a Arábia Saudita tem tantos homens no controle do Parlamento - Imagem: Paulo Sérgio/Ag.Câmara
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O Congresso empossado no início de fevereiro está mais distante do que nunca da agenda das mulheres. É o que revela uma pesquisa inédita do Centro Feminista de Estudos e Assessorias, conhecido pela sigla Cfemea, sobre o perfil dos parlamentares eleitos, e divulgado em primeira mão por CartaCapital. Mesmo diante da luta dos movimentos populares para tornar as Casas Legislativas mais plurais, o avanço é tímido, quase imperceptível. Dos 513 ­deputados eleitos, somente 91 são mulheres, duas delas trans. No Senado, as brasileiras ocupam 11 das 88 cadeiras. A representação feminina no Parlamento é menor que a verificada no patriarcal reino da Arábia Saudita, regido pela lei islâmica. Para as pesquisadoras responsáveis pelo estudo, a eleição de 2022 só “manteve a hegemonia masculina”.

A desigualdade não é meramente numérica. Mesmo com a eleição de mais mulheres nos últimos pleitos, a agenda feminista segue enfraquecida. “Há uma diferença entre ‘políticas de presença’ e ‘políticas de ideias’”, explica Denise Mantovani, coordenadora da pesquisa. “A luta pela presença é fundamental porque as pessoas precisam se ver representadas nos espaços de poder. Ter mais mulheres, inclusive negras e transe­xuais, faz as brasileiras se enxergarem no Parlamento. Mas a representatividade não é um fim em si. É preciso que essa presença esteja associada a uma agenda.”

O estudo Perfil Parlamentar Sob a Ótica Feminista (2023-2026) avaliou o posicionamento de todos os deputados federais e senadores eleitos com relação às temáticas de gênero. A metodologia adotada foi a análise dos discursos dos então candidatos nas redes sociais durante o ­período oficial de campanha, entre agosto e outubro de 2022, a partir de um recorte transversal. Após se debruçarem sobre o vasto material, a socióloga Milena Belançon e as cientistas políticas Maíres Barbosa e Mari Mesquita concluíram que o cenário é bem pior do que se imaginava. “Os brasileiros elegeram um Congresso Nacional mais conservador do que nunca em temas relacionados a direitos sexuais e reprodutivos, violência contra a mulher, concepção de família, posicionamento sobre o cuidado, religião e posições antigênero. Os parlamentares eleitos no último pleito, em 2022, vão perpetuar muito do que o fascismo semeou nos últimos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro: retrocesso, preconceitos e perda de direitos”, prevê o relatório.

Apesar da vitória de Lula com 60,3 milhões de votos, as maiores bancadas eleitas, na Câmara e no Senado, são do PL, o partido de Bolsonaro. Doutora em Ciência Política e pós-doutora em Estudos Feministas Interseccionais pela UnB, ­Mantovani ressalta que a extrema-direita conseguiu, de fato, deixar a sua marca na política institucional. “Não que ela não existisse antes, mas nos últimos anos veio crescendo e agora ocupou espaços da esfera pública”, observa a pesquisadora. “É preocupante perceber que parlamentares com essa perspectiva de exclusão, de ataque aos direitos humanos e confrontação à igualdade de gênero, aos direitos sexuais e reprodutivos, estejam se consolidando no campo institucional.”

A pesquisa do Cfemea é dividida em cinco eixos temáticos: “Posicionamento religioso”, “Estado laico”, “Família”, “Violência” e “Aborto e violência ­sexual”. O Congresso é majoritariamente religioso: 63% dos parlamentares fizeram questão de destacar suas crenças durante a campanha; no Senado, foram 56%. Como o estudo contou ainda com um questionário, foi possível identificar que 89 deputados são contra a ideia de que “religião e política não devem se misturar”. Ou seja, 17,35% dos votos na Câmara podem estar contaminados por convicções de ordem religiosa. Somente 36 parlamentares se posicionaram favoráveis a essa afirmação.

O estudo do Cfemea analisou os discursos dos parlamentares eleitos nas redes sociais durante a campanha de 2022

Em relação à família, os congressistas reafirmaram posições conservadoras, sobretudo aqueles ligados à bancada do agronegócio. Ao menos 82 parlamentares se manifestaram contrários ao reconhecimento de famílias lideradas por mulheres solteiras ou por casais LGBTQIA+. Eles costumam utilizar a expressão “família tradicional” para defender um núcleo familiar formado por um homem e uma mulher, ambos cisgênero, e dispostos a criar filhos. Destes, 11 acreditam que o cuidado com os filhos deve ser uma atribuição apenas das mulheres, e outros 71 sugerem ser “potencialmente contrários à ideia de divisão quantitativa” desse cuidado.

A agenda com maior adesão dos parlamentares é o enfrentamento à violência doméstica. A Lei Maria da Penha é explicitamente apoiada por 130 deputados, e outros 128 se mostraram potenciais apoiadores. Ou seja, ao menos metade dos integrantes da Câmara mostra-se disposta a defender a causa. “A violência doméstica é transversal e atinge todas as mulheres, ricas ou pobres, brancas ou negras. Claro que o recorte de classe e raça intensifica o problema, mas esse é um ponto que pode possibilitar alianças”, diz Mantovani. O machismo não é, porém, reconhecido como um problema estrutural, que agrava o cenário de insegurança das brasileiras.

O aborto ainda é um tabu. Apenas 3,12% dos deputados eleitos se declaram a favor da interrupção da gravidez por decisão da mulher até a 12ª semana de gestação, e todos eles pertencem ao campo progressista. No caso das mulheres vítimas de estupro, dos 125 parlamentares contra o aborto apenas 30 continuam sustentando a opinião. O Senado é ainda mais reacionário. Nenhum eleito se mostrou favorável à ampliação desse direito.

“O aborto é o grande pânico moral que orienta todo o conjunto do campo cristão. Unidos em torno dessa pauta, eles fazem vista grossa para todos os crimes, todos os ataques aos direitos das mulheres, da população LGBTQIA+, e até para o envolvimento de milícias na política institucional”, denuncia Jolúzia Batista, integrante da equipe do Cfemea.

O objetivo da pesquisa, segundo ­Mantovani, também é encontrar pontos de convergência. “Apesar do cenário adverso, inclusive com a presença de uma extrema-direita violenta e misógina no Parlamento, notamos que alguns temas podem propiciar alianças. A política não é estática.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Clube do Bolinha “

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