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O que há de novo é o passado

A invasão da Ucrânia marca o retorno do modelo clássico de guerra

O que há de novo é o passado
O que há de novo é o passado
Os tanques russos cruzam as estradas da Ucrânia, nesta invasão que reinaugura a divisão da Guerra Fria. Ocidente contra Oriente - Imagem: Maxar Technologies/AFP
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Alguma coisa fez com que a expressão “operação militar especial” soasse, ao menos a nós ocidentais, tão cínica, tão revoltante – e tão insuportável. Aquelas primeiras imagens das estações de comboios ucranianas nos fizeram olhar em silêncio como normalmente fazemos diante de alguma coisa extraordinária e inesperada. Espanto, acho que é a isto que chamamos espanto. E, no entanto, o que ali havia de novo não era verdadeiramente uma novidade. O que ali havia de novo era o passado. O regresso de “um passado que não quer passar”. Alguém disse que agora era a guerra de verdade. Acho que acertou.

As imagens pareciam de outro mundo que apenas conhecíamos dos filmes e da memória histórica – as crianças que choram, as mães que fogem, os pais que ficam para lutar. Se aquelas fotografias fossem em preto e branco não saberíamos que datas lhes atribuir. Depois vieram as imagens de estradas destruídas, dos edifícios bombardeados, dos corpos nas ruas. O inferno da guerra. O regresso da guerra. Mas exatamente o que regressa? O que há de novo nesta guerra? Não foi ela sempre assim, sempre bárbara, sempre cruel, sempre sanguinária? O que há agora de diferente? O que há de novo não é exatamente o regresso da guerra, mas o regresso de um certo estilo de guerra. Algo que julgávamos posto de lado pela história. Ao menos na história europeia.

Um pouco de perspectiva. Depois da Segunda Guerra Mundial, dois acontecimentos pareciam ter potencial para acabar de vez com a guerra e com a barbárie – o direito internacional e a bomba atômica. As Nações Unidas e Hiroshima. Por um lado, a Carta das Nações Unidas baniu a guerra de agressão da linguagem do direito. Por outro lado, a tecnologia nuclear­ transformou a guerra entre potências em exercício de suicídio coletivo. Um general francês escreveria anos depois que “a guerra morreu em Hiroshima”. Mas a guerra não morreu, a guerra mudou. Acabou um certo padrão de guerra e começou a guerra dos 50 anos, a chamada Guerra Fria, que trouxe novos tipos de conflitos – “guerras de procuração” ou “guerras assimétricas” ou ainda “conflitos de baixa intensidade”. A seguir ao 11 de Setembro, outro modelo despontaria como ideia de “guerra global”, como “estado de violência” que não se passa só entre Estados, mas entre estes e as “organizações terroristas”. Um tipo de guerra que não reconhece fronteiras, que não distingue público e privado, criminoso e combatente, e em que, basicamente, não se conhece exatamente o inimigo – o terrorista, que vive misturado com a população civil. A guerra global ao terror será a “guerra dos 20 anos”, se tivermos sorte e se nada vier que a prolongue. Agora, com a Ucrânia, é outra coisa. Sim, outra coisa. O que parece estar a regressar ao palco da história é o modelo clássico de guerra – dois exércitos, dois Estados, dois povos, dois líderes em disputa por um território. Uma guerra em que há campo de batalha, há enfrentamento direto de exércitos, há deslocamentos, frente de batalha, há bombardeamentos, há perdas militares, há mortes de civis e onde, ainda por cima, coisa nunca vista até aqui, um dos beligerantes diretos tem armas nucleares. O que vemos hoje na Ucrânia é o tipo de guerra que ­Alberico Gentilis, no século XVI, descreveu como “conflito armado, público e justo”.

Dois exércitos, dois Estados, dois povos, dois líderes em disputa por um território

Regressa um estilo de guerra e regressa um discurso sobre a guerra. Regressa o entusiasmo com os “guerreiros da Guerra Fria” e o enaltecimento da sua herança política. Regressa a ideia de celebrar o fim da globalização e de acabar de vez com a perigosa ilusão cosmopolita de um só mundo, um só planeta e da procura de uma agenda política global de cooperação. Regressamos, dizem os divulgadores ocidentais, à lucidez estratégica que nunca devíamos ter abandonado – um inimigo bem identificado e bastante maldoso.

A guerra da Ucrânia, dizem alguns, pode ser uma tragédia, mas é também uma oportunidade de arrepiarmos caminho e mudar a geopolítica mundial. Nós e os outros. Deixemos de lado a ingenuidade de pensar que a unidade ocidental possa ser baseada em propósitos comuns de cooperação – ela é, e sempre foi, baseada no ­medo do inimigo comum. A guerra da Ucrânia é o regresso de um certo estilo de guerra, de uma certa retórica de guerra e de uma certa “nova ordem mundial”.  O que há de novo nesta “nova ordem” é a nostalgia da Guerra Fria. Nós e eles. Dois mundos. O Mal e o Bem. O puro e o impuro. O que há de novo nesta guerra é o passado.

Na verdade, para ser mais rigoroso, o regresso não é o regresso de todo o passado, mas de um certo passado. E sendo só o regresso de um certo passado é um passado revisto. Um passado que desvaloriza o papel internacional que a Europa construiu nas décadas a seguir à Segunda Guerra Mundial. Um passado que determina para a Europa o fim “do longo período sabático da geopolítica”, querendo significar exatamente o que parece – é altura de pôr de lado o diálogo político e o direito internacional e de regressar à cultura do poder, à cultura das armas. Esse passado não é o passado, mas uma revisão do passado. Um passado revisto que coloca de lado o projeto de integração europeia, um projeto político generoso e singular que foi capaz de construir uma ­reputação internacional sustentada na defesa dos valores da paz, da cultura humanista e de uma ordem mundial subordinada ao Direito Internacional. Após décadas de recuperação do pós-Guerra, esta parecia ser a Europa em que se podia confiar: um parceiro júnior dos Estados Unidos, é certo, mas também um soft power de alcance mundial, concentrado no diálogo político e na resolução pacífica de conflitos. Não mais. Agora, os “novos guerreiros” espalham nos jornais a sua condescendência com os políticos ingênuos, lembrando-lhes que o poder vem da força, não do direito – eis tudo o que resta do cinismo “de quem viu demasiado e compreendeu demasiado pouco”. Com a invasão da Ucrânia regressa também o dilema estratégico europeu – simples testa de ponte dos Estados Unidos na Eurásia ou ator político global que reclama a sua identidade própria? No fundo, o que esta guerra traz de novo é o passado. E a galope. •


*Foi primeiro-ministro de Portugal.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O que há de novo é o passado”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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