Economia
Leste e Oeste
Com os EUA menos poderosos, o Brasil reforça os laços regionais e aposta na China
No contexto de um Estados Unidos menos poderoso do que era antes da ascensão da China e da presença crescente nas economias da América Latina, Lula avançou na retomada de relações com os países vizinhos e os EUA, e no próximo mês irá à China. Os passos do presidente indicam a intenção de fortalecer posições no continente latino-americano para obter melhores condições de negociação com os dois países mais poderosos do mundo, em uma preparação para relançar a economia em meio à forte oposição interna de banqueiros, da mídia e de parte importante do empresariado, conclui-se de análises de economistas e cientistas políticos.
A grande importância política do encontro de Lula com Joe Biden contrasta com a anemia da sua pauta econômica e isso revela um EUA diferente, a exigir nova estratégia por parte do Brasil, avalia o cientista político Diego Pautasso, professor do Centro de Estudos da América Latina e Caribe da Universidade de Ciência e Tecnologia de Sichuan, na China. “Lula sabe que os EUA não têm as mesmas condições da outrora potência hegemônica do pós-Guerra. O recente encontro não produziu sequer uma sinalização de grandes investimentos ou acordos de cooperação importantes. A China, como potência ascendente, desponta como um campo maior de possibilidades e oportunidades para o Brasil, embora nossas exportações para o país asiático estejam concentradas em produtos primários, sobretudo soja, petróleo e minério de ferro. Esta é apenas uma dimensão da problemática desindustrialização brasileira que remonta à década de 1980”, destaca em artigo.
A retomada das relações externas, neste momento, implica riscos e oportunidades em um contexto complexo, que desafia a nossa capacidade de interpretação e de posicionamento estratégico, ressalta Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. As mudanças do cenário internacional, diz, estão longe de serem unidirecionais. “É importante ter isso em mente. Do ponto de vista tecnológico, com repercussões comerciais, temos visto concorrências e conflitos crescentes. Por outro lado, o equacionamento do aquecimento global passa necessariamente pela criação de consensos e cooperação internacional.”
A importância política do encontro de Lula com Biden contrasta com a anemia da pauta econômica
O potencial do País é evidente. O Brasil tem, segundo Cagnin, atributos favoráveis para capturar investimentos externos derivados das estratégias dos EUA e mesmo da Europa em busca de menor dependência da produção chinesa e maior resiliência de suas cadeias de fornecedores. Esses atributos são a proximidade geográfica, o compartilhamento de ideias e valores ocidentais, competências industriais substanciais a despeito de toda desindustrialização ocorrida nas últimas décadas, um mercado interno nada desprezível, uma matriz energética majoritariamente renovável e com grande possibilidade de ampliação. Nada disso resolverá, contudo, se não houver empenho interno. “Meu ponto é que, se não assegurarmos competitividade para a produção doméstica, muito do potencial não se tornará efetivo. É hora de tornarmos o Brasil um país do presente e deixarmos de ser o “eterno país do futuro”, ressalta o economista-chefe do Iedi.
A reindustrialização passa, por certo, pela agenda da competitividade e da redução do famigerado Custo Brasil, mas não só. Reindustrialização deve significar “revitalização industrial”, ou seja, é preciso que a indústria se fortaleça, ganhando participação no PIB nacional, mas por meio de um processo transversal de modernização, que inclui digitalização e sustentabilidade, e de desenvolvimento de atividades mais complexas e intensivas em tecnologia, o que exigirá maior musculatura de nosso sistema de inovação, com aprimoramento e sem mais interrupções nos mecanismos públicos de fomento, maior integração universidade-empresa, com ações eficazes de formação de capital humano, entre outros pontos. É um processo que deve estar mais claramente identificado com a melhora social, de modo a lhe conferir legitimidade. “Temos muitas frentes para explorar, como nas áreas da saúde, da mobilidade urbana e na criação de uma alternativa econômica e sustentável para a Região Amazônica”, aponta o economista. “Se conseguirmos melhorar a nossa competitividade”, prossegue, “acelerar os nossos ganhos de produtividade a partir de uma nova base produtiva mais digital e sustentável, teremos menos receio da concorrência com os produtos chineses, que, como muitos estudos do Iedi mostram, realmente avançaram em mercados importantes para as exportações da indústria brasileira.”
As possibilidades de tirar partido dessas mudanças, diz Cagnin, dependem mais de nós do que do contexto externo. Não nos beneficiaremos integralmente se não formos capazes de resolver velhas pendências, como a reforma tributária e os investimentos em infraestrutura, além de adaptar a infraestrutura física aos impactos da transição climática.
Estratégia. Lula com o uruguaio Lacalle Piu, que negocia um acordo bilateral com a China, risco à sobrevivência do Mercosul – Imagem: Ricardo Stuckert/PR e iStockphoto
O novo espaço de atuação do Brasil foi reconfigurado pela reglobalização, destaca o economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor do programa de pós-graduação em economia política da PUC de São Paulo. A pandemia e a guerra da Ucrânia revelaram a vulnerabilidade das cadeias internacionais de suprimentos. A lógica da globalização pós-anos 1990 subestimou a segurança de fornecimento e permaneceu concentrada no fator custos. Assim, a localização dos investimentos sempre levava a sobrevalorizar os critérios associados aos custos de produção. Um exemplo é a extrema dependência de chips, com 70% a 80% da produção centralizada no Leste Asiático.
“A reglobalização levará em conta a proximidade de localização, além de fatores extraeconômicos, como baixa probabilidade de catástrofes naturais e guerras, entre outros. Isso abre novas possibilidades para o Brasil”, ressalta Lacerda. Diante do cenário descrito, diz, temos inúmeras possibilidades de atrair investimentos. Apesar da desindustrialização em curso, tem DNA industrial e ainda o maior parque fabril da América Latina, além de disponibilidade de energia renovável, água e insumos industriais, economia de escala e mercado consumidor relevante. A reindustrialização não será, entretanto, automática, frisa. Será preciso adotar políticas macroeconômicas favoráveis e uma política industrial moderna. Um primeiro passo importante foi a recriação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, recolocando o tema na agenda, e o novo papel do BNDES na transição para a economia de baixo carbono, a economia digital e a sustentabilidade.
O avanço da China sobre os parceiros do Brasil na América Latina e a possibilidade de os tratados bilaterais com os chineses implodirem o Mercosul requerem preservar a regionalização no âmbito do mercado comum e intensificar as relações com os demais blocos e países, inclusive a própria China, destaca Lacerda. O fato de integrantes do Mercosul terem estruturas econômicas díspares, caso do Uruguai, dificulta, mas não impede a integração.
O Brasil tem frentes a explorar em saúde, mobilidade urbana e biodiversidade
O Brasil é o país que mais pode ganhar com a integração de cadeias produtivas na América do Sul por ter a estrutura produtiva mais diversificada e complexa da região, aponta o economista Pedro Silva Barros, pesquisador do Ipea. Há poucas cadeias regionais de valor estruturadas, diz, e a indústria automobilística é uma delas. “A posição geral brasileira deve ser de equidistância entre os principais polos de poder, EUA, China e União Europeia, e de fortalecimento da integração regional para, a partir do espaço geopolítico regional consolidado na América do Sul, estabelecer agendas positivas com cada um dos outros espaços”, recomenda. Sem integração e sem governança regional, ressalta, a América do Sul se torna mais vulnerável às potências extrarregionais. “Nos últimos anos, o Brasil havia se isolado da América Latina. O exercício de liderança regional para a construção de consensos é condição para que países vizinhos não optem por relações profundas e subordinadas com potências extrarregionais”, alerta Barros. Um exemplo é o propalado acordo de livre-comércio do Uruguai com a China à margem do Mercosul, que, “além de romper com as bases do próprio bloco, traz o pior das tensões globais para o nosso entorno”.
A América do Sul é o espaço privilegiado das exportações brasileiras de alta e média-alta intensidade tecnológica. “Os 11 países vizinhos só respondem por 1,6% das importações mundiais, mas 13% do que o Brasil exporta fica no subcontinente. Na década de 2000, era mais de 18%. Se considerarmos apenas as exportações brasileiras de alta e média-alta intensidade tecnológica, mais de 35% vão para os nossos vizinhos”, ressalta o economista.
O contexto internacional realça a importância das relações entre países da América Latina e a China. “O que se observa claramente é que os EUA estão disputando a posição internacional do Brasil agora com o novo governo Lula. É sabido que a influência brasileira é expressiva em toda a região sul-americana e que a atual diplomacia brasileira deve convergir com os movimentos internacionais voltados ao fortalecimento da ordem multipolar”, diz Pautasso. Para Lula, acredita, não se tratava de obter grandes conquistas dos EUA, que se parecem sem condições de ofertar, como ficou claro. O objetivo é estabelecer um bom canal de diálogo e evitar que Washington se transforme num empecilho à movimentação global da diplomacia brasileira.
A China, acrescenta o cientista político, é um país central para uma ordem multipolar oposta à neoliberal e unilateral promovida por Washington. A China também pode se tornar uma variável-chave para alavancar a industrialização brasileira, desde que os investimentos e os acordos de cooperação sejam condicionados a transferências tecnológicas e joint ventures. “Cabe ao Brasil realizar uma leitura acurada das oportunidades e dos desafios para impulsionar o desenvolvimento nacional e ocupar um lugar no sistema internacional compatível com a sua estatura.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Leste e Oeste “
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