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Cria cuervos

Nossos esforços devem ser canalizados para a compreensão das impossibilidades de se pensar uma ‘burguesia do bem’ na periferia do capitalismo

Cria cuervos
Cria cuervos
Rita Von Hunty (Foto: Reprodução/Redes sociais)
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Há um ditado popular em espanhol que muito me agrada: “Cria cuervos, y ellos te ­sacarán los ojos”, algo como “crie corvos e eles te arrancarão os olhos”. Talvez esta seja a imagem mais didática para pensar o capitalismo dependente e a burguesia no Brasil.

Na América Latina, os governos progressistas e/ou de centro-esquerda tendem, invariavelmente, a esbarrar num desafio e numa limitação aos seus projetos políticos: a ausência de uma burguesia nacional-desenvolvimentista. É necessário salientar que não é exatamente uma novidade pensar sobre isso. A questão é que, para além da crença de que seria possível gerir ou gerar tal classe, seguimos, no lado de baixo do Equador, gerindo e gerando os corvos que, passado algum tempo, arrancam nossos olhos – outra vez, e sempre.

Sabemos, desde o velho Marx, que o sistema capitalista se ergue sobre uma fase de acumulação primitiva de capital que depende da exploração de uma lógica colonial capaz de estabelecer regiões de desenvolvimento e regiões de pilhagem. E sabemos também que, à medida que esse sistema social, econômico e político se consolida e se expande, tal lógica recrudesce na forma centro-periferia.

A periferia do sistema capitalista (o Sul global) produz imensuráveis quantias de valor e transfere o lucro de tal produção à centralidade do sistema, seja via superexploração das forças de trabalho periféricas, seja via parcerias que, para atrair capital e tecnologia produtiva estrangeira, reduzem seus custos. É, dessa forma, potencializada a Mais-Valia, via manutenção do polo técnico-científico apenas nas regiões da centralidade do sistema e a exportação de maquiladoras para as periferias. As coisas finas e bonitas ficam com o centro, as grosseiras e duras, com a periferia.

Uma longa tradição de intelectuais da economia política no Sul global dedicou a vida à pesquisa, à demonstração e ao aprofundamento do que ficou conhecido como Teoria Marxista da Dependência. Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e Jaime Osório são alguns exemplos de intelectuais brasileiros que refletiram sobre o tema.

No século seguinte àquele em que produziram suas reflexões, ainda somos defrontados com o fato de que o rentismo segue a ser um mal para as economias do Terceiro Mundo. Os primeiros meses do governo Lula-Alckmin têm permitido à sociedade ver emergir discursos sintomáticos dos setores detentores de capital no País, bem como de seus porta-vozes no mundo midiático/jornalístico.

É claro que a volta do debate sobre a independência do Banco Central é um dos eixos dessa discussão. Este é, aliás, mais um caso que explicita como setores da burguesia manipulam o discurso, a fim de que seus interesses de classe adquiram notas mais “palatáveis” junto à opinião pública.

“Independência” é um termo caro às sociedades ocidentais, em especial àquelas que foram colonizadas em algum momento de sua história. Chamar a desvinculação do Banco Central dos poderes orçamentários e executivos do Estado e sua consequente entrega aos interesses do mercado financeiro de “independência” é uma grande trapaça.

Talvez valesse também aqui questionar se em algum cenário realista seria possível imaginar o Federal Reserve estadunidense independente do Congresso no país.

Outros exemplos úteis a esta discussão estão na manipulação discursiva (beirando o ridículo) dos editoriais do jornal O Estado de S. Paulo.

Notadamente alinhado aos interesses de quem faz fortuna como rentista, o jornal publicou, no sábado 11, um texto que comparava a postura e os discursos de Lula diante de uma das mais elevadas taxas de juro recentes (13,75%) com os ataques e desmontes promovidos por Bolsonaro à Agência Nacional de Vigilância Sanitária durante a pandemia de Covid-19. O jornal escreveu que ambos “convergem numa incompreensão da legitimidade que lhes foi conferida para governar o País”.

Dois dias antes, outro editorial impelia à ilação de que as mazelas que assolam o País hoje seriam responsabilidade do Partido dos Trabalhadores, uma vez que este esteve à frente do Poder Executivo por 14 dos últimos 20 anos.

A crítica à manipulação ideológica é uma parte do trabalho que temos pela frente, mas acredito também que muitos de nossos esforços devam ser canalizados para a compreensão e a comunicação das impossibilidades de se pensar uma “burguesia do bem” na periferia do capital.

Nosso objetivo maior deve ser sempre aumentar a autonomia da classe trabalhadora e pensar, a partir dela, modos de vida à altura dos desafios que o século XXI nos impõe. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cria cuervos

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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