

Opinião
A direita que nunca decepciona
A primeira e mais urgente tarefa desse campo político é ver-se livre de Bolsonaro


Finalmente, uma publicação com graça. Referindo-se ao extraordinário episódio do senador Marcos do Val, o filho do antigo presidente, o improvável Carlos Bolsonaro, escreveu no Twitter que “essa nova direita nunca decepciona”. No já longo período em que sigo com atenção a política brasileira, nunca tinha lido um mot d’esprit vindo da ex-família presidencial. Ao contrário, há muito que me tinha habituado à grosseria e à boçalidade das suas falas. Mas, surpresa, a tirada da “decepção” teve certa piada. Por um lado, ela nos lembra que o bom humor faz falta à política. Mas, sobretudo, ela é interessante por evidenciar a dimensão da tragédia da direita – quanto mais precisa se recuperar, mais ela se afunda. É como se para sair do buraco em que se encontra não achasse outro remédio senão continuar a escavar – e a afundar-se cada vez mais.
O problema é sério. Primeiro ponto. Os dois acontecimentos políticos que marcaram o primeiro mês do governo Lula, a invasão dos edifícios governamentais e a tragédia de saúde pública na região dos Yanomâmis, são uma verdadeira desgraça para o anterior governo Bolsonaro. O golpismo político e a incúria governamental com os índios (com intenção ou sem ela) têm potencial para não serem mais esquecidos ao longo de toda a legislatura. Se é verdade que todos os governos gostam de fazer prévios inventários negativos relativos ao país que recebem, no caso do presidente Lula, o governo não precisa fazer nada, porque a própria direita se encarrega de fazer o trabalho, explicando ao povo brasileiro por que a mudança política foi absolutamente necessária. É nesse sentido que a frase tem piada – há uma direita que nunca decepciona. A amalucada invasão dos edifícios do Estado, a desgraça indígena, agora tornada conhecida de todo o povo brasileiro, e ainda as pequenas histórias de “minutas do golpe” e de conspirações do tipo “operação tabajara” (sim, sim, tudo muito ridículo) transformaram a retórica da pesada herança num fato político indiscutível. Esta é a primeira vitória do governo Lula. A pesada herança é hoje reconhecida como um fato, mesmo por muitos que votaram em Bolsonaro.
Mas regressemos à direita, não àquela que nunca decepciona, mas à outra, que acredito que exista, àquela direita responsável e que está consciente do trabalho que tem pela frente neste período pós-eleitoral. Na verdade, já passou um mês depois das eleições, tempo suficiente para lamber as feridas, cair em si, recuperar o ânimo e olhar em frente. Se o principal dever de uma oposição é oferecer ao País uma alternativa crível em que o povo possa apostar nas próximas eleições, devemos reconhecer que a tarefa não se apresenta simples para a direita – nem liderança, nem programa, nem ambiente político. Vai ter de construir tudo de novo. Em síntese, e sem exageros, a direita brasileira está mergulhada numa profunda crise política. Trinta dias depois das eleições, este é o único balanço seguro que é possível fazer – o governo Lula, e a maioria social que construiu nas eleições, não tem nem oposição e muito menos alternativa política visível. É por isso que a frase de Carlos Bolsonaro tem graça. Há uma direita que nunca decepciona … a esquerda.
Mas não nos deixemos levar pelo contentamento com a desgraça dos adversários, principalmente quando é fácil ver como a adversidade da direita é também uma tragédia para a democracia brasileira. Nesse sentido, no sentido democrático, há uma tarefa da direita que é também uma tarefa nacional – a primeira e mais urgente tarefa da direita é ver-se livre de Bolsonaro, do radicalismo político de Bolsonaro, dos filhos de Bolsonaro como figuras políticas centrais da política brasileira, da violência retórica de Bolsonaro, que ameaçava seus opositores com o exílio, a cadeia ou a “ponta da praia”. Agora que o pesadelo passou, é hora de a direita regressar ao fundamento democrático e construir um debate político saudável e respeitoso com os seus opositores políticos. O Brasil não precisa da direita que “nunca decepciona”, mas necessita urgentemente da direita democrática de volta ao terreno do jogo político. E isso vai exigir de muitos dos seus líderes coragem e desassombro – nem golpes, nem atalhos, nem invasões, nem apelos militares, nem “conspirações tabajaras”. Apenas o monótono exercício rotineiro da política da retórica, do convencimento e do respeito pela vontade livremente expressa do povo. Não, não parece muito – mas é muito. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A direita que nunca decepciona”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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