Editorial

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Brasil masoquista

Aos problemas históricos que permanecem juntam-se outros, enquanto se formulam leis para proteger os vilões

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Imagem: Sérgio Lima/AFP
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Triste a sina do Brasil: permanecem problemas antigos que o tornam o mais desigual do mundo, depois da África do Sul, vítima até de uma situação pior do que aquela dos demais países africanos. Vivemos uma pantomima trágica, incapazes de percebê-la, enquanto se formulam leis para proteger os vilões. Só houve um avanço graças à decisão de Lula, ao enquadrar as Forças Armadas. No mais, precipitamos no abismo de uma irredutível medievalidade, pela qual casa-grande e senzala continuam de pé. Juros de 14% obstam qualquer propósito empresarial de voltar a uma produção industrial, de sorte a favorecer o agronegócio, a condenar o Brasil à exportação praticamente exclusiva de commodities.

À revelia de papa Francisco, incansável na defesa da paz mundial, enfrentamos, por causa de Vladimir Putin, empenhado em reconstruir o poderio soviético, a perspectiva de uma guerra nuclear a inquietar o mundo todo. A pergunta é: até quando o Ocidente resistirá à a­meaça? O que sobra para enfrentar a fúria russa, senão o recurso às mesmas armas por ele empregadas contra a Ucrânia agredida? É este o dilema proposto ao mundo e Lula reage com uma profissão de fé pacifista, como se isto bastasse para evitar o cataclismo anunciado.

Em compensação, a Câmara dos ­Deputados, com aval petista, ­reelegeu­ ­Arthur Lira na sua presidência, qual estivesse disposta a premiar os serviços por ele prestados por longo tempo a Jair Bolsonaro, genocida da nação indígena dos ­Yanomâmis, no momento em ­viagem turística à Flórida. Consta ser ele um fã definitivo de Mickey Mouse. Este Brasil incapaz de resolver seus problemas antigos, digamos mesmo atávicos, e, todavia, disposto a criar outros novos em folha, a ponto de gerar a impressão de formas de masoquismo de proporções federais.

Cabe perguntar aos nossos estarrecidos botões se o Brasil estaria preparado para se haver com uma enxurrada de parlamentares não da oposição, mas quintas-colunas, e a lidar com a terra arrasada deixada pelo ex-capitão com absoluta naturalidade, como se daria se não passasse de um levíssimo acidente de percurso. Respondem os botões, em tom sinistro: mas que pretende você? Este é o Brasil.

Este enredo começa, se quisermos, há 523 anos, mas na versão mais recente galopamos tempo adentro para alcançar o ponto inicial do ­impeachment de Dilma Rousseff, presa no Palácio da Alvorada pelo usurpador de plantão, Michel Temer, corrupto até a medula, conforme é do conhecimento até dos armazéns e do cais do Porto de ­Santos. É ali que se estabelece o nó da história mais recente a precipitar problemas de sempre, acrescidos os novos e não menos daninhos.

Imagem: Michel Dantas/AFP e CONDISI-YY/Ministério da Saúde

E logo eclode notícia do genocídio da nação Yanomâmi. A Globo fornece ao seu público um relato da tragédia. Fantástico!

Já havíamos tomado o caminho errado quando chamamos de redemocratização o período que se seguiu ao fim da ditadura, que a própria, aliás, decidira, conforme os planos do general Golbery do Couto e Silva e a morte de Tancredo Neves, consagrado pela população o salvador da pátria. O governo que, em obediência às condições do momento, influenciadas pela lembrança da ditadura recentíssima, coube a José Sarney, manchado por dois episódios do Cruzado: o primeiro em janeiro de 1986 e o segundo em novembro desse mesmo ano. Em ambos os casos se iludiram o governo e o País.

As desavenças provocadas pelo desastrado governo de Fernando Henrique Cardoso, capaz de quebrar o Brasil em três diferentes ocasiões, facilitaram a vitória de Lula em outubro de 2002 e de um período de paz e inegável progresso ao longo de dois mandatos do ex-metalúrgico, e na continuidade do seu governo representada pela eleição de Dilma ­Rousseff. E foi então que o bolo embatumou, como se disse então, por obra do golpe que conduziu Michel Temer à Presidência.

A Lava Jato, engendrada por Sergio Moro e Deltan Dallagnol, incumbiu-se de prender Lula na proximidade das eleições de 2018 para favorecer a subida ao poder do energúmeno demente Jair Bolsonaro, até hoje presente não somente como turista nos Estados Unidos, mas também nas pessoas de governadores e prefeitos a infestarem o Brasil. Enriquecido o Congresso pela presença de inúmeros quintas-colunas, preparemos nossos corações para as desgraças que ainda virão, e de grande porte. Definham as esperanças em relação a um futuro alvissareiro, enquanto o Brasil teima em ser vítima de si mesmo.

Passamos por uma tentativa de golpe, verdadeira intentona praticada com apoio dos quartéis, no evento estarrecedor de 8 de janeiro passado, em Brasília, e da “fantástica” exibição do genocídio do povo Yanomâmi no espaço menor a um mês, sem entender com os necessários clareza e temor o significado destes pavorosos eventos. Uma operação punitiva está ainda em andamento, a se esmerar em prisões importantes e a seguir a rota singular de um projeto de golpe proposto em várias páginas datilografadas que passou de mãos em mãos impunemente.

Não é o caso, agora, de analisar o desempenho do governo de Lula ao ter em vista a proximidade do pleito, mas aí está toda a imponência da pauta de preocupações a aguardar a atenção do presidente. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1245 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Brasil masoquista”

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