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Porteira escancarada

A China muda de estratégia, abandona a política de Covid Zero e aposta na imunidade de rebanho

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Porteira escancarada
Esforço desperdiçado. Depois de impor longa e drástica quarentena, Jinping deu um cavalo de pau e abriu tudo. Os chineses continuam frustrados - Imagem: Presidência de Ruanda e Noel Celis/AFP
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Quando Sunny* pensa em março do ano passado, ela ri com tristeza da provação. A estudante de Xangai de 19 anos passou aquele mês trancada em seu dormitório, sem poder comprar coisas essenciais ou lavar roupas, proibida até de tomar banho durante duas semanas por medo da Covid. Em abril, a cidade inteira foi bloqueada. Foi o início do caos de 2022, quando as autoridades chinesas locais tentaram desesperadamente seguir o decreto de Covid Zero do presidente Xi Jinping, enquanto enfrentavam a cepa mais transmissível do vírus até então, a Ômicron. “Todo mundo entrou em pânico, ninguém estava preparado”, diz ao Observer.

No fim do ano, a Covid Zero havia acabado. Sunny diz ter se sentido instantaneamente “aliviada” com o fim dos bloqueios, mas seus sentimentos logo se transformaram em raiva, quando ficou claro que o governo da China havia aberto o país sem estar pronto. “Achei que foi tudo em vão.”

Nos últimos dois meses, o vírus espalhou-se rapidamente pelo país. Até 10 mil casos críticos foram registrados em hospitais todos os dias. Os necrotérios ficaram sobrecarregados, as farmácias relataram escassez de medicamentos básicos e o fornecimento de medicamentos antivirais foi interrompido por longas negociações com fornecedores estrangeiros. O avô de Sunny estava entre os que morreram naquela onda. “Era de manhã, minha mãe entrou no meu quarto e disse: ‘Seu avô está no pronto-socorro’”, lembra. “Algumas horas depois, ele morreu. Minha avó estava chorando, dizendo que ele a havia deixado para trás.”

A extraordinária reviravolta de ­Jinping deixou os analistas alarmados e confusos. A China não foi o único país a escolher uma estratégia de Covid Zero, e certamente não o único a “deixá-la morrer” depois de abandoná-la. Mas foi o último, e especialistas globais em saúde dizem que havia muitas lições que ele poderia ter ouvido, principalmente garantir que os níveis de vacinas e de recursos de saúde estivessem elevados antes do tsunami de casos. “Todos os governos tiveram de decidir abrir em algum momento ou arriscar que as consequências dos bloqueios superassem em muito os problemas da Covid”, diz a professora Emma McBryde, epidemiologista da Universidade James Cook, em Townsville, na Austrália. “A maioria dos modelos sugere que seria melhor para o sistema de saúde abrir lentamente. Embora houvesse pouca diferença no número de infectados, poderia significar que algumas vidas seriam salvas se o sistema de saúde funcionasse bem.”

Jinping abriu, no entanto, os portões. Até o dia da revogação, os governos locais ainda desenvolviam e aplicavam medidas e infraestrutura da Covid Zero. A cidade de Chongqing construía um centro de quarentena com 21 mil leitos. Especialistas em saúde e política chinesa disseram ao Observer que acreditam que as autoridades locais foram constrangidas. Qualquer preparação para acabar com a Covid Zero seria vista como voto de desconfiança tanto na política quanto no líder, ato de suicídio político.

Assim, quando os casos se espalharam, não havia médicos, enfermeiras, leitos de terapia intensiva, remédios para febre ou antivirais suficientes, e as taxas e as opções de vacinação eram inadequadas. De acordo com dados do governo chinês, as primeiras 55 mil mortes registradas nessa onda ocorreram em uma faixa média de 80 anos. Na China, os idosos vulneráveis também são os mais propensos a não ser vacinados. “Sinto que não há estratégia nessa área crítica”, diz o professor William Hurst, vice-diretor do ­Centro de Geopolítica da Universidade de ­Cambridge (Reino Unido), sobre a vacinação na China. “Estou surpreso com a rapidez com que eles estão se movendo, mas ainda mais com a aparente falta de atenção às medidas básicas com as vacinas.”

O número de infectados e mortos disparou após o fim da rígida quarentena

O escritor chinês Murong Xuecun, que entrevistou residentes de Wuhan no primeiro bloqueio em 2020, diz que a abrupta reviravolta da China “foi uma decisão precipitada de um homem só”, tomada sem consulta. “Em 24 horas, vimos uma virada total. Não temos ideia do que aconteceu nessas 24 horas, o que mudou a opinião de Xi Jinping, por que houve uma mudança de 180 graus de um extremo ao outro.”

Há muito debate sobre o impacto dos protestos de novembro contra a Covid ­Zero em sua decisão. Alguns especialistas dizem que, provavelmente, havia tantos casos, os números ocultos, que Jinping percebeu que a política tinha de acabar. Outras teorias apresentam considerações financeiras, pois a economia da China foi atingida pela Covid Zero. Chen Daoyin, ex-professor associado de ciência política da Universidade de Ciência Política e Direito de Xangai, disse que Xi Jinping provavelmente agiu quando sentiu que a situação econômica não era mais sustentável. “Quando o líder age por capricho, não há previsibilidade nem certeza.”

Uma suspeita frequentemente compartilhada é a de que Jinping quis acelerar a recuperação econômica construindo rapidamente a imunidade de rebanho com uma onda maciça. Essa teoria foi reforçada pelas autoridades de saúde chinesas, que afirmaram que 80% da população havia sido infectada e, portanto, a possibilidade de uma segunda onda era “muito pequena”. Alguns especialistas em saúde alertaram contra essa suposição. “A imunidade de rebanho parecia ocorrer para a cepa original e para a Delta, mas parece ser muito menos aplicável à Ômicron”, disse McBryde.

As estimativas de mortes por Covid na China variam da contagem oficial de cerca de 75 mil a mais de 1 milhão. A imagem é obscurecida pela falta de transparência, definições rígidas na atribuição de uma morte relacionada à Covid e falhas na coleta de dados. Frequentemente, quando há mortes em massa, as famílias lutam para que seus parentes não sejam reduzidos a uma estatística. Na China, poucos receberam essa cortesia.

Em todo o país, centenas de milhares de famílias estão de luto. Muitos agora questionam sua fé no governo. O episódio aparentemente não afetou o poder de Jinping, mas prejudicou sua reputação. Um homem de 32 anos em Guangzhou diz que foi patriota, mas agora está desiludido. “Talvez eu devesse agradecer à Covid por me fazer ver claramente todo o sistema político e econômico.” •


*Alguns nomes de pessoas na reportagem foram alterados, por pedido de anonimato.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves. 

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1245 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Porteira escancarada “

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