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Planeta cinza

O envelhecimento da população mundial alcança novos níveis e preocupa diversos governos

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Resistência. Os franceses voltaram às ruas para protestar contra o aumento da idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos - Imagem: Alan Jocard/AFP
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No Japão, até os criminosos envelhecem. Nos notórios sindicatos do crime yakuza­ do país, mais da metade dos integrantes tem mais de 50 anos, de acordo com a agência nacional de polícia. Os veteranos que passaram dos 70 anos superam aqueles de 20 anos em dois para um, embora os homens mais jovens sejam a fonte tradicional de “músculos” do grupo. O Japão é pioneiro em se adaptar à demografia distorcida de uma sociedade que envelhece, com o impacto de suas baixas taxas de natalidade exacerbado por uma forte resistência à imigração. Mas seus dilemas são cada vez mais comuns a todo o mundo.

A Índia pode estar prestes a se tornar o país mais populoso do mundo, com a previsão de nascimento de mais de 200 milhões de novos cidadãos nas próximas duas décadas. Em algumas partes de sua região sul, mais próspera, o país começou a ficar grisalho. No estado costeiro de ­Kerala, apenas 5,1% da população tinha mais de 60 anos em 1961, abaixo da média nacional. Até 2025, prevê-se que serão 20%, com um dreno correspondente nas finanças do Estado. À medida que luta com um número crescente de idosos carentes, o governo planeja ter novos poderes para confiscar propriedades que os pais entregaram aos filhos, se a geração mais velha não estiver bem cuidada, e devolvê-las. Os formuladores de políticas também se esforçam para reverter uma tendência sombria que transformou Kerala num destino para famílias que viajam de partes do país ainda menos preparadas para uma população idosa, para abandonar parentes doentes. Um esquema chamado “Prathyasa” (Esperança) visa mandá-los de volta para seus estados de origem.

Os desafios enfrentados por Kerala e pelo Japão são cada vez mais comuns em grande parte do mundo, onde as famílias diminuem e os indivíduos vivem mais. A redução da fertilidade e a queda da mortalidade se combinam para acelerar o envelhecimento geral de uma população. Em meados do século, a maioria dos países que ainda desfrutarão do dividendo demográfico da juventude estará na África Subsaariana, segundo números da ONU.

No Japão, reverter a constante queda da taxa de natalidade virou assunto de segurança nacional

Em outros lugares, na Ásia, Europa e América Latina, os governos precisarão apoiar o número crescente de cidadãos idosos e vulneráveis. Poucos países começaram a efetuar as mudanças sociais, políticas e físicas necessárias, embora não seja um desafio que tenha pegado os políticos de surpresa.

As mudanças demográficas acontecem em câmera lenta. Os dados sobre as taxas de natalidade dão aos governos e cientistas décadas de alerta sobre como sua população mudará, a não ser que haja grandes catástrofes, como guerras. “O planejamento intencional funcionaria melhor do que um remendo após o fato”, disse ­Eileen Crimmins, presidente da Escola de Gerontologia da Universidade do Sul da Califórnia, em Leonard Davis. Encontrar dinheiro para pagar o cuidado dos idosos envolve, no entanto, a realocação de recursos, que geralmente é difícil – seja a abordagem de Kerala de proteger os bens dos idosos, sejam os esforços dos governos ocidentais de manter os cidadãos no mercado de trabalho por mais tempo.

Na França, trabalhadores foram às ruas em greve na sexta-feira 20 e protestaram contra os planos do governo de aumentar a idade de aposentadoria em dois anos, para 64. Apesar da raiva profunda, a idade ainda é menor do que a da aposentadoria no Reino Unido e nos Estados Unidos, onde as autoridades haviam aumentado a faixa mínima. “A situação francesa parece ser um exemplo de como tornar as coisas difíceis”, disse Crimmins. “A mudança de política atinge aqueles que se preparavam para a aposentadoria.”

Resistência. Os franceses voltaram às ruas para protestar contra o aumento da idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos – Imagem: Alan Jocard/AFP

Quando as pensões foram introduzidas pela primeira vez, no século XIX, chegar aos 60 anos era estatisticamente equivalente a passar dos 100 hoje, diz Sarah Harper, professora de gerontologia da Universidade de Oxford. Mudanças limitadas na idade de aposentadoria não acompanharam o rápido aumento da expectativa de vida, mesmo em lugares mais rígidos que a França. Muitos baby boomers afortunados no Reino Unido e nos Estados Unidos com aposentadorias generosas baseadas em seu último salário desfrutaram de décadas de aposentadoria tranquila e boa saúde. Um punhado dos mais sortudos poderia passar toda a carreira em uma empresa, aposentar-se cedo, viver até os 90 anos e, assim, passar mais anos na lista de pensões do RH do que na folha de pagamento.

Ainda hoje, vidas mais longas e a perspectiva de aposentadoria precoce podem significar décadas como pensionista do governo. Um número cada vez menor de trabalhadores jovens não consegue manter financeiramente um grupo crescente de aposentados mais velhos. “Vivemos numa sociedade em que dizemos a um jovem: ‘Fique na educação até os 20 e poucos anos, você pode se aposentar (mais cedo), com 50 e poucos, e viver bem até os 90’. Portanto, é apenas um terço da sua vida sendo ativo e contributivo, e isso claramente não faz sentido no mundo moderno”, disse Harper. “Todos nós vamos ter de trabalhar mais tempo.”

A China acaba de anunciar que sua população caiu pela primeira vez desde a década de 1960. Os volumes crescentes de jovens estudantes e trabalhadores impulsionaram décadas de crescimento econômico, mesmo quando um governo preocupado com a superpopulação impôs uma política punitiva e muitas vezes abusiva de filho único. Agora que o crescimento desacelera e a população envelhece, o governo mudou abruptamente de curso e tenta encorajar mais filhos. As preferências mudam, porém, lentamente e a China é um dos muitos lugares onde uma sociedade misógina aplica uma pesada punição às mulheres que se tornam mães.

Após décadas da política de filho único, a China quer ver as famílias crescerem

Quase universalmente, quando as mulheres têm acesso à educação e a oportunidades econômicas, elas optam por ter menos filhos. Se suas carreiras forem prejudicadas e elas tiverem uma carga desproporcional de cuidados infantis, é provável que haja ainda menos bebês. “Sabemos que, se você quiser aumentar a taxa de fertilidade de, digamos, 1,3 para 1,8, a diferença entre, por exemplo, a Grécia e os países escandinavos, se você fornecer cuidados infantis de boa qualidade, as mulheres tomarão a decisão de ter um segundo ou terceiro filho”, afirma Harper.

A diferença entre as mulheres terem, em média, um ou dois filhos pode ser a diferença entre uma população em espiral descendente e uma que permanece relativamente estável. No Japão, a taxa também é de 1,3 e não mostra sinais de mudança há anos. Décadas de truques e campanhas falharam em atingir os casais e o governo demorou para aceitar que mais apoio financeiro pode ter mais impacto do que palestras de políticos conservadores sobre o dever patriótico de uma mulher de dar à luz.

Em seu primeiro grande discurso político neste ano, o primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, disse ter ordenado aos ministérios que trabalhem juntos para tomar medidas “sem precedentes, decisivas e ousadas” de combate à baixa taxa de natalidade, que as autoridades classificaram como uma ameaça “à própria sobrevivência da nação”. Kishida prometeu aumento no subsídio infantil, expansão dos cuidados infantis após a escola e reformas que tornarão mais fácil para os pais tirarem licença para criar famílias – tudo financiado por verbas duplicadas para crianças, segundo promessa que será concretizada em junho.

Enquanto evitam discussões sérias sobre imigração e uma nova abordagem para o equilíbrio entre vida profissional e pessoal, os governos nacional e locais acreditam mais em ofertas de dinheiro, visando moradores de Tóquio e outras grandes cidades que reclamam dos ­custos proibitivos de criar filhos. O governo metropolitano de Tóquio planeja um programa de 11 bilhões de ienes (cerca de 435 milhões de reais) para oferecer creches gratuitas para todos os segundos filhos, a partir de outubro de 2023, o que beneficiaria 50 mil crianças. Também está considerando dar 5 mil ienes (200 reais) por mês a todos os menores de 18 anos para ajudar nos custos de educação. “São projetos que o governo central deveria abordar, mas decidimos oferecer nosso próprio apoio, pois não há tempo a perder”, disse a prefeita da cidade, Yuriko Koike.

Demanda. Poucos países estão preparados para a mudança demográfica – Imagem: iStockphoto

Sobre as questões do envelhecimento, paira a desigualdade entre os países e dentro deles. No Reino Unido e nos Estados Unidos, ser rico adiciona nove anos saudáveis à expectativa de vida, segundo estudos recentes. Os avanços na ciência médica e a obsessão de alguns dos mais ricos do Ocidente pela imortalidade podem exacerbar ainda mais essas diferenças, não apenas nos países, mas além das fronteiras.

Se os ricos viverem mais, o fardo sobre os jovens saudáveis pode ficar ainda maior? Apesar de toda a retórica política alarmista, uma população em declínio não deve ser vista como uma calamidade, assim como o crescimento rápido não o foi. As discussões sobre o tamanho da população sempre foram um gatilho fácil para o pânico moral, quer se pense que há bebês demais ou de menos. O clérigo britânico Thomas Malthus deu seu nome, há dois séculos, à teoria de que o crescimento populacional superaria o dos recursos. O fato de que ele se provou errado por muitas décadas, a previsão de “pontos de inflexão” para o colapso social por fome e conflitos nunca ter ocorrido, não impediu que as teorias ganhassem força regular.

Uma das maneiras óbvias de lidar com a mudança demográfica é encorajar a migração. Isso pode levar a uma perigosa fuga de cérebros – o Reino Unido tem uma lista vermelha de países onde não deve recrutar profissionais de saúde, porque atraí-los para a ­Grã-Bretanha devasta os sistemas de saúde locais. Mas se os trabalhadores receberem direitos e treinamento, isso pode servir como maneira eficaz de transferir capital e conhecimento de áreas ricas para as mais pobres. E em um mundo que enfrenta uma catástrofe climática e queda preocupante na biodiversidade, esse é um modo muito melhor de enfrentar os desafios do envelhecimento da população em algumas áreas do que o crescimento populacional desenfreado, perigoso tanto para nós quanto para o planeta. “Estamos em transição no século XXI e precisamos nos ajustar a essa transição estrutural de idade, em vez de combatê-la”, disse Harper. “Para que cada geração mais ou menos se substitua.” •


*Colaborou K. A. Shaji, na Índia.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Planeta cinza “

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