Cultura
O público voltará?
Para o distribuidor e produtor Márcio Fraccaroli, a raiva bolsonarista distanciou as pessoas dos filmes brasileiros


Em 2022, os filmes brasileiros tiveram uma participação de mercado de apenas 4,6%. A porcentagem é um pouco maior que aquela do desastroso 2021 – quando o circuito começou a ser reaberto, pós-pandemia –, mas muito inferior à média dos últimos 15 anos, de cerca de 15%.
Os dois filmes mais vistos foram Turma da Mônica – Lições e Tô Ryca 2, ambos distribuídos pelo consórcio Downtown/Paris Filmes. Em 2019, as duas empresas haviam sido responsáveis por 58,7% da renda obtida com os filmes brasileiros e, no ano seguinte, bateriam um recorde com Minha Mãe É Uma Peça 3, o último filme de Paulo Gustavo.
Há dois meses, quando já se sabia que o ano terminaria, de novo, com uma pífia performance do cinema brasileiro nas bilheterias, a Paris divulgou que, até o fim de 2025, lançará nas salas de exibição, com a Downtown, mais de 50 longas-metragens nacionais.
Levando-se em conta que a Paris foi sempre uma empresa focada na venda de ingressos – entre seus sucessos estão, além de várias comédias, as franquias Detetives do Prédio Azul e Carrossel –, o longo line-up chamou atenção do mercado e apontou para uma tendência. Passado o frisson da chegada das plataformas de streaming, começa a se sedimentar a percepção de que os filmes continuarão precisando das salas para serem economicamente viáveis.
Na entrevista a seguir, Marcio Fraccaroli, diretor-geral da Paris, explica a decisão de continuar tendo a sala de cinema como foco e diz apostar que, com o fim do governo Bolsonaro, o público se reconciliará com os filmes brasileiros.
Em 2022, só 4,6% do espectadores dos cinemas foram assistir a alguma produção nacional
CartaCapital: O cinema brasileiro está vivendo de novo uma crise de público?
Márcio Fraccarolli: De fato, 2022 não foi um bom ano para o cinema nacional por alguns motivos. Primeiro, porque o que foi entregue para as salas eram coisas antigas, filmadas antes da pandemia. Os lançamentos atrasaram por falta de investimento, problemas na captação de recursos e atrasos na conclusão dos filmes. Outro problema é que as classes C e D tiveram muitas dificuldades financeiras e se distanciaram das salas de cinema. Historicamente, o cinema brasileiro só funcionou bem quando as classes C e D tiveram poder de compra. Em 2022, houve uma queda específica nas salas localizadas em regiões mais populares. A gente, além disso, sofreu com um governo que criticou e pressionou a atividade. O contexto político fez com que o mercado saísse de uma situação de investimentos principalmente públicos para a dependência de investimentos privados. Os streamings passaram a nos contratar para produzir para eles (nesses casos, os direitos de propriedade cabem às plataformas). E também compraram tudo o que estava pronto e tinha potencial.
CC: A Paris lançou um filme que foi diretamente atacado pelo governo, Marighella. O que isso significou para vocês?
MF: Marighella foi prejudicado, especialmente, pelo atraso na data de estreia, algo que teve a ver com dificuldades junto à Ancine (Agência Nacional do Cinema) e com a pandemia. Mas, no fim, o filme teve um bom marketing. O problema é mais amplo que isso. O antigo governo, ao dizer que todo mundo mamava na Lei Rouanet e que todo artista é drogado, destruía diariamente a cultura nacional. Então, parte do público foi bombardeada com informações negativas, desconectadas das obras. Eles destruíram valores, artistas e grandes histórias, como a de Marighella. Não tenho dúvida de que esse olhar de raiva atrapalhou o mercado. Eu queria ter lançado Meu Nome É Gal no ano passado, mas, por causa do governo, achei que não valia a pena lançar um filme que passava pela ditadura. Adiamos a estreia para 2023 e a Gal Costa morreu. Foi pesado dizerem que quem faz cinema faz mal para o Brasil, sendo que o cinema gera divisas e empregos. Mas passou. Bons tempos vão vir.
CC: A Paris mudou a forma de lançar os filmes depois da pandemia?
MF: Não mudamos nada. Todos os nossos filmes são pensados para cinema, seja um projeto como Meu Nome É Gal, seja um projeto popular, como Minha Irmã e Eu, com a Ingrid Guimarães. Nenhum dos nossos filmes irá direto para o streaming. Mesmo no caso dos títulos que já foram licenciados para plataformas mantivemos os direitos sobre o cinema. A gente segue acreditando que o cinema como primeira janela é fundamental para o negócio. Mas a experiência da sala vai exigir histórias cada vez mais bem desenvolvidas e aprofundadas. O streaming é um triturador de conteúdo: eles precisam de muito material para manter os assinantes. Nós, do cinema, precisamos entregar algo a mais. Filmes como o do (cantor) Leonardo, Chico Bento e Minha irmã e Eu teriam sido produzidos muito mais rapidamente antes da pandemia. Mas o público mudou, ficou mais exigente e, por isso, levamos mais tempo para dar sinal verde para o roteiro.
Voltar a rir? Mesmo as comédias, filão bom de bilheteria, viveram uma crise. Minha Irmã e Eu (à dir.), com Ingrid Guimarães, é uma das apostas de 2023 – Imagem: Ellen Soares
CC: Isso significa ter maior valor de produção?
MF:Sim. Subimos, em média, 50% o valor de produção. Eu diria que essa crise nos levará a trabalhar melhor. A concorrência do streaming e a falta de interesse do público se apresentam, para o produtor brasileiro, como uma oportunidade de dar um salto e melhorar. Melhorar na produção e nas histórias.
CC: O que significa melhorar as histórias?
MF: Contar histórias inspiradoras e que parem de pé. O que me faz entrar em um projeto hoje é ter a percepção de que é uma história que pede a tela escura, grande, e que não vai competir com o seu celular e a sua casa. Não estou falando de filmes como Avatar, mas de bons personagens e histórias. O cinema independente vive de boas sacadas. Ninguém, fora de Hollywood, tem 200 milhões de dólares para fazer um filme de ação. A exceção é a Coreia do Sul, que tem feito filmes de terror e ação com bons orçamentos. Mas eles têm o mercado interno. Aqui, se tivéssemos 50% do mercado ocupado por filmes brasileiros, também poderíamos ter orçamentos maiores. O cinema nacional precisa crescer de forma geral para que haja fluxo de dinheiro. Mas isso não é fácil, sabemos.
“A experiência da sala vai exigir histórias mais bem desenvolvidas e aprofundadas”
CC: Em 2017, Cacá Diegues acusou Bruno Wainer, da Downtown, de ser monopolista. Naquele ano, os lançamentos do consórcio Downtown/Paris corresponderam a 75% da renda do cinema brasileiro. Como você encara, hoje, essa questão?
MF: A gente, simplesmente, conseguiu fazer com que o público fosse ver, nas salas de cinemas, pessoas que elas adoravam, como Fábio Porchat (Vai Que Dá Certo), Ingrid Guimarães (De Pernas Pro Ar), Leandro Hassum (O Candidato Honesto), Tatá Werneck (Loucas Pra Casar) e, é claro, o Paulo Gustavo (Minha Mãe É Uma Peça). Esse boom das comédias nada mais era do que o público indo se divertir. Mas a gente estava mexendo com os pilares do cinema brasileiro. A comédia veio no embalo dos novos protagonistas da internet e, naquele momento, alguns realizadores mais antigos não tinham mais o mesmo espaço no mercado. Mas, com o tempo, a indústria como um todo foi entendendo que não devemos falar mal uns dos outros e que o nosso trabalho contribuía para a conquista do market share. Uma mudança que trouxemos também foi a ocupação do circuito nas férias com filmes brasileiros. A gente passou, todo janeiro e julho, a estrear uma comédia. Foi um ciclo de 15 anos.
CC: Às vezes, tenho a impressão de que a marca de Minha Mãe É Uma Peça 3, que indica o fim desse ciclo, dificilmente voltará a ser atingida, dada a nova configuração do mercado audiovisual.
MF: Quero acreditar que não, porque sempre acredito que o mercado vai crescer. Acredito que a gente ainda vai ter um filme de ação que chegue aos números de Minha Mãe É Uma Peça 3. Em 2023, o mercado como um todo vai precisar da sala de cinema e, sobretudo a partir do segundo semestre, teremos lançamentos importantes. Não acredito que o público deixou de gostar dos filmes. O mercado será distensionado e as pessoas voltarão a ver as histórias e os artistas dos quais elas gostam na tela grande e retomarão a experiência de ver um filme sem outras distrações. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O público voltará?”
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