Cultura
O antes e o depois das pandemias
David Quammen, escritor de mão-cheia e conhecedor perspicaz das sequências de aminoácidos de um vírus, relata a aventura do Sars-CoV-2


A Covid-19 é a primeira pandemia na qual a genômica molecular foi aplicada em escala. Graças a essa ciência, os pesquisadores conseguiram publicar o genoma do novo Coronavírus, o Sars-CoV-2, em tempo recorde e acompanhar o surgimento de novas variantes.
Graças à ciência da filogenética molecular, um método para ler a profunda história evolutiva dos vírus, conseguimos rastrear sua divergência em relação a outros Coronavírus conhecidos – como os do tipo Sars hospedados em morcegos e cujos códigos genéticos estão armazenados em laboratórios na China e em outras partes do mundo.
Poucos escritores são capazes de entender as sequências de aminoácidos que dão a esses vírus seus diferentes códigos e, além de tudo, relacioná-los a outros vírus semelhantes ao Sars. E menos ainda possuem os dons literários necessários para tornar a genômica compreensível para leigos. Felizmente, David Quammen, cujos trabalhos anteriores incluem livros sobre o ebola e outros vírus que periodicamente infectam seres humanos, reúne todos esses predicados.
Tal como acontece com Contágio (Companhia das Letras), seu best seller de 2012 sobre os riscos representados pelo Coronavírus e outros vírus hospedados por animais silvestres, Quammen, no recém-lançado Sem Fôlego, sempre consegue lançar mão de uma referência literária quando a ciência fica difícil.
Aprendemos, por exemplo, que os códigos genéticos dos vírus não são mais vírus do que a peça Hamlet é uma apresentação teatral. Em termos literários, eles são apenas textos. São necessários vários outros passos, incluindo seu cultivo em células animais, para fazê-los aparecerem no palco do mundo. E é preciso um processo conhecido como “ganho de função” para convertê-los no equivalente genômico do monstro de Frankenstein.
Isso é importante porque, desde o início da pandemia de Coronavírus, as origens do Sars-CoV-2 têm sido objeto de um debate febril: foi o resultado de um transbordamento natural de animais ou o vírus foi projetado em laboratório e liberado no mundo, seja por acidente ou por intenção?
A principal prova dessa última teoria é a recuperação, antes da pandemia, de uma sequência viral denominada RaTG13, reconstruída por pesquisadores chineses a partir do excremento de morcegos recolhido em 2013 em uma caverna perto de Kunming, em Yunnan.
SEM FÔLEGO. David Quammen. Tradução: Laura Teixeira Motta e Pedro Maia Soares. Companhia das Letras (432 págs., 129,90 reais)
Esse dejeto de morcego foi levado para o Instituto Wuhan de Virologia (WIV), onde, a partir dele, cientistas cultivaram vírus vivos. Até o momento, esse vírus é a correspondência genética mais próxima do Sars-CoV-2 e, como Kunming está a 2.080 quilômetros de Wuhan, a suspeita recaiu sobre os cientistas chineses.
Sem Fôlego não aborda essas suspeitas imediatamente. Em vez disso, em 432 páginas que abrangem 76 capítulos, Quammen nos leva a um tour de Wuhan a Washington DC, por meio de laboratórios e pesquisadores em cidades tão diversas quanto Hong Kong, Sydney, Edimburgo, Roterdã e New Orleans. Embora a maioria das entrevistas para o livro tenha sido conduzida pelo Zoom, Quammen já havia percorrido selvas no Sudeste da Ásia e visitado cavernas com muitos dos cientistas que aparecem em suas páginas.
Isso não apenas permite que ele incremente a ciência com retratos vívidos, como o torna um juiz perspicaz de personalidades. O que surge é um guia viral veloz e sem medo de educar os leitores sobre as nuances do ganho de função e a ecologia mais ampla das pandemias.
Provavelmente, nunca saberemos as origens da pandemia, diz Quammen. Isso ocorre, em parte, porque amostras de animais comercializados no “mercado úmido” de Huanan, em Wuhan, suspeito de abrigar o vírus, assim como outros mercados de animais vivos na China, não foram coletadas em tempo hábil. Mas ocorre também porque a ciência nunca é definitiva, e especialistas qualificados para ler o genoma do Sars-CoV-2 têm discordâncias.
Não é o caso, em uma resenha jornalística, de se revisitarem as questões divulgadas pelos teóricos da conspiração sobre por que alguns importantes cientistas inicialmente se calaram sobre suspeitas de que o vírus pode ter sido projetado no WIV, ou por que alguns especialistas acreditam que certas características do vírus são “incomuns” e não poderiam ter surgido por meio da seleção natural. Basta dizer que Quammen aborda cada teoria e preocupação de maneira exemplar.
Ao examinar a afirmação de Alina Chan, pesquisadora de Boston, de que, quando o Sars-CoV-2 foi detectado pela primeira vez em Wuhan, já estava “bem adaptado ao seu hospedeiro humano”, algo que para ela sugere manipulação em laboratório, Quammen declara: “Fato verdadeiro”. No entanto, ele rapidamente acrescenta que a questão-chave é se o vírus foi “inexplicavelmente, suspeitamente e exclusivamente adaptado ao ser humano”.
Quammen não considera isso particularmente suspeito, visto que o Sars-CoV-2 é um vírus generalista, capaz de infectar uma ampla gama de animais, incluindo morcegos, pangolins, gatos, visons e veados.
Mas, mais até do que nesses debates, o verdadeiro valor do livro talvez esteja no olhar naturalista que Quammen joga sobre o tema. Ao final, fica uma profunda apreciação da diversidade da natureza e dos meandros da seleção natural, que todos os dias embaralha e reorganiza os genomas dos vírus de maneiras apenas imaginadas pelos cientistas.
E por mais que a genômica molecular e os experimentos de ganho de função corram o risco de, acidentalmente, criar algo novo para a natureza, eles também são nossa melhor chance de prever e preparar nossas defesas para a próxima pandemia. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O antes e o depois das pandemias “
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