

Opinião
Ao não conseguirmos contextualizar o bem, o mal o faz
Caravaggio, ao tentar encarnar o verbo no contexto em que vivia, pagou o preço de ver suas obras rejeitadas e teve de vender até para comer


“A rejeição das obras do artista não se limitava pela escolha de modelos e cenários vulgares. O espírito provocador também não colaborava para sua aceitação, como ficara patente na tela anterior ‘O repouso durante a fuga para o Egito’, em que a Virgem aparece ruiva e São José surge com uma garrafa de vinho próximo de seus pés descalços.” – Sobre Caravaggio, em Grandes Mestres da Pintura, Coleção Folha.
Circula na Internet um texto de Dilson Cunha, em que compara a foto do índio Yanomami deitado, que faleceria por desnutrição, com a do ‘Cristo Morto’, de Holbein.
O texto se refere ao ataque epilético que Dostoiévski tivera perante aquela pintura, tal a dor que lhe infligira.
A repercussão internacional do genocídio Yanomami tem sido imensa, sendo as imagens comparáveis àquelas dos campos de concentração nazistas. Se algo havia, aos olhos do mundo, que diferenciasse Bolsonaro de Hitler, já não há.
Com efeito, se o bem pode se encarnar, também pode o mal.
Ao não conseguirmos contextualizar o bem, o mal o faz.
Caravaggio, ao tentar encarnar o verbo no contexto em que vivia, pagou o preço de ver suas obras rejeitadas e teve de vender até para comer.
Passados cinco séculos, estão aquelas pinturas avaliadas em milhões de dólares.
Não foi essa a causa da perseguição de Roma à igreja progressista latino-americana? Não foram o Brasil e o Peru os países mais atingidos por ela? O que hoje presenciamos não resulta daquilo?
No volume citado, lemos: “A maior contribuição das duas grandes obras, no entanto, residia no extraordinário tratamento da luz. Símbolo da presença divina, a luz surgiu como elemento autônomo no espaço e no tempo e determinou o ritmo narrativo da cena. O historiador Gombrich observou que ’em seus quadros, a luz não torna os corpos mais suaves nem graciosos. É dura e quase cegante em seu contraste com as sombras profundas. O conjunto da extravagante cena ressalta com sólida honradez o que poucos de seus contemporâneos eram capazes de apreciar. Seus efeitos, porém, mostraram-se decisivos para os artistas posteriores.”
‘Mutatis mutandi’, não foi isso a bossa nova? A autonomia dos instrumentos, em perfeito casamento de iguais com os vocais?
Em se tratando de relação encarnada, recomendo vivamente o filme estoniano “Segredo de Guerra” (no original “Firebird”, ou pássaro de fogo, na tradução que seria a correta).
Trata-se de história de amor, real, entre um piloto de caça e um soldado russo, durante a ocupação soviética da Estônia, nos anos 70/80 do século passado. Imperdível.
Vale notar que Caravaggio também se valia de amantes, de ambos os sexos, como inspiração de sua arte.
De fato, sobre meu quadro favorito, Nossa Senhora de Loreto, a referida coleção aclara: “Caravaggio pintou Nossa Senhora de Loreto, também chamada Nossa Senhora dos Peregrinos, para a capela Cavaletti da igreja de Santo Agostinho de Roma. Tradicionalmente, a Virgem de Loreto era representada suspensa no ar, flutuando sobre uma nuvem. Caravaggio, como era de se supor, deu ao quadro um tratamento radicalmente diferente. Primeiro, a modelo escolhida para encarnar a Virgem era uma bela prostituta chamada Lena, o que causou escândalo imediato. Segundo, o artista situou a Virgem com seu filho nu em seus braços na porta de sua modesta casa romana, à qual acabavam de chegar dois peregrinos.”
A título de sincronicidade, vale notar que Nossa Senhora de Loreto é padroeira dos aeronautas, tendo seu manto a forma de asas, pois teria sido feito com a lona da tenda do sultão Solimão, o Magnífico, que sitiara Viena em 1529.
Nesse sentido, o filme da Estônia volta a ressignificar asas, anjos, liberdade, em sintonia com o que o pintor fizera há 5 séculos, como notam os comentários da coleção: “O que também ofendia a alta cúria era a identificação da Sagrada Família com pessoas comuns contemporâneas.”
Por que a identificação ofendia?
Porque brocados, ouros e dourados não são de Deus.
Ofendia-os sua própria identificação com o mal, não com o bem; com as trevas, mais do que com a luz; com a feiúra, antes da beleza.
Na tela Madalena Arrependida, o encarte nota: “O artista voltou a situar a história religiosa em um contexto contemporâneo cotidiano…”. Ou seja, era contínuo seu desejo de encarnação do Verbo, mais do que faria qualquer alto prelado.
Nos mesmos contexto e texto, que boa surpresa a Praça da Bandeira, em Jundiaí, ter perdido as grades!
Pela primeira vez, presencio uma tal retirada, do que tem sido um processo contínuo de aprisionamento dos espaços comuns!
Que simbólico que naquela praça estejam a Igreja de São Benedito e o Clube 28 de setembro, dos negros!
Finalmente, a conquista dos espaços pela Mãe África parece chegar à longínqua, esbranquiçada e ainda conservadora Jundiaí.
Que a cidade se torne mais negra, índia e encarnada (em ambos os sentidos)!
Mais saúde coletiva, mais educação inclusiva; menos fechamento, privilégios e preconceitos; e mais cultura!
Demandemos nosso direito à educação e ao lazer, como nos garante o artigo 6 da Constituição Federal! Peçamos a oportuna inclusão da cultura em seu texto!
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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