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A mentalidade da crise

Em Davos, os senhores do planeta mergulham na melancolia

A mentalidade da crise
A mentalidade da crise
Gelo. Na bucólica paisagem alpina, a 1,5 mil metros de altura, os olimpianos discutem a vida dos reles mortais - Imagem: Pascal Bitz/Word Economic Forum
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A guerra na Ucrânia. Uma economia em rápida desaceleração, fragmentação e desglobalização. O aumento do custo de vida. A mudança climática. Há muito para os grandes e bons globais começarem a discutir nesta segunda quinzena de janeiro, quando Davos recomeça após um hiato de três anos.

Estritamente falando, não é o primeiro encontro de líderes mundiais, empresários, acadêmicos e sociedade civil desde o início da pandemia, mas o evento do Fórum Econômico Mundial em maio passado foi reduzido e não muito concorrido. Como teste foi bom, mas um verdadeiro Davos acontece tradicionalmente em janeiro, quando há neve espessa no solo do vilarejo suíço a 1,5 mil metros de altitude nos Alpes. No passado, o clima no convescote oscilou entre o otimismo extremo e a melancolia desenfreada, a depender do estado da economia mundial. Neste ano, parece certo que será a segunda opção. Como disse Klaus Schwab, fundador e presidente-executivo do fórum, “crises econômicas, ambientais, sociais e geopolíticas estão convergindo e se confundindo”. O objetivo de Davos neste ano, acrescentou, é livrar-se da “mentalidade de crise”.

Isso será mais fácil dizer do que fazer. Antes de existir uma “mentalidade de crise”, havia uma “mentalidade de ­Davos”, na qual os encontros anuais promoviam uma forma inclusiva de globalização, e participantes de todo o mundo trabalhavam em colaboração para enfrentar problemas transfronteiriços, como as mudanças climáticas.

À medida que os riscos para a paz, a prosperidade e o futuro do planeta aumentaram, a vontade de cooperar – o espírito de Davos, como Schwab gosta de dizer – diminuiu. O relatório de riscos globais desta edição do fórum, uma publicação anual que detalha o que os especialistas consideram os riscos mais urgentes no curto e no longo prazo, foi contundente em seu alerta. “É necessária uma ação coletiva concertada antes que os riscos cheguem a um ponto crítico”, descreve o documento. “A menos que o mundo comece a cooperar de forma mais eficaz na mitigação climática e na adaptação climática, nos próximos dez anos isso levará ao aquecimento global contínuo e ao colapso ecológico.”

A percepção popular é de que o fórum econômico é uma organização secreta e sinistra semelhante a algo saído de um romance de James Bond. Na realidade, não tem poder executivo algum e é mais uma gigantesca sala de conversa global, na qual os líderes mundiais aproveitam a oportunidade para estar juntos e os executivos fazem negócios a portas fechadas. Bond sobrevoa Davos a caminho do covil de Blofeld no topo da montanha em 007 – A Serviço Secreto de Sua Majestade, mas isso é o mais próximo de um romance de Ian Fleming que o evento chega.

A urgência climática, a recessão e a guerra na Ucrânia assombram a reunião nos Alpes Suíçoso

Em vez disso, as IGWELs – reuniões informais de líderes econômicos mundiais, com a presença de primeiros-ministros, presidentes, autoridades de Bancos Centrais e altos executivos – são projetadas para ver se há uma maneira de encontrar soluções globais para problemas globais. Em certo sentido, Davos prepara o cenário para cúpulas no fim do ano, onde são tomadas decisões reais.

Alguns líderes mundiais – Donald Trump, por exemplo – usaram Davos para se gabar de como as coisas iam maravilhosamente bem em casa. Outros vão à Suíça com a intenção de mobilizar apoio para uma causa global, o que, no caso de Tony Blair em 2005, significou falar sobre a necessidade de alívio da dívida e mais ajuda para países em desenvolvimento em dificuldades.

O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, não terá seguido os passos de Blair na segunda-feira 16, embora possa ter encontrado muitas almas gêmeas entre os empresários de tecnologia e os banqueiros de Wall Street que sempre frequentam Davos em grande número. É uma frustração para os organizadores do Fórum que o governo do Reino Unido não use Davos para esboçar sua agenda global, mas o primeiro-ministro e o chanceler Jeremy Hunt acham que não seria o melhor visual conviver com a elite global, enquanto a Grã-Bretanha é tomada por uma crise de custo de vida e greves. Em vez disso, os políticos britânicos de maior destaque em Davos serão o líder da oposição, Keir Starmer, e a chanceler paralela Rachel Reeves, que aproveitam a oportunidade para mostrar como o Partido Trabalhista se tornou favorável às empresas.

Muita coisa aconteceu desde Davos em 2020, que foi dominado por uma briga entre Trump e a ativista climática ­Greta Thunberg. As relações entre os Estados Unidos e a China estão piores do que há dois anos. A pandemia e suas consequências tornaram os países muito mais cautelosos quanto à exposição a longas e complexas cadeias de suprimentos. A era de ouro da globalização no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 é agora uma memória que se desvanece rapidamente.

Apesar de toda a conversa de Schwab sobre romper um círculo vicioso de formulação de políticas egoístas e de curto prazo, a turma de Davos tem de lidar com um mundo que tem se “desglobalizado” e se tornado cada vez mais frágil. De certa forma, um pouco de exame de consciência e humildade não seria ruim, porque, para aqueles que lutam para sobreviver, há poucas coisas mais nauseantes do que autointitulados senhores do universo retorcendo as mãos sobre a necessidade de abordar a desigualdade. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A mentalidade da crise”

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