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Segredos de liquidificador

A farra com o cartão corporativo é apenas um aperitivo dos segredos que Bolsonaro tentou esconder por cem anos

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Os passeios de jet ski do ex-capitão foram pagos com recursos públicos. Protegido por um decreto de sigilo, o general Eduardo Pazuello em breve terá os malfeitos expostos - Imagem: Evaristo Sá/AFP e Redes sociais
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Os primeiros dias de 2021 são uma amarga lembrança para milhares de famílias brasileiras. O País sofria o impacto da segunda – e letal – onda de Covid-19 e sua população mais pobre vivia o ápice do abandono com a suspensão do auxílio emergencial pelo governo federal. O Amazonas passava pelo momento mais agudo da crise no abastecimento de oxigênio, quando, diante da inércia criminosa do Ministério da Saúde, ao menos 60 pacientes morreram sem atendimento adequado nas unidades de saúde de Manaus, segundo o Ministério Público Estadual. A milhares de quilômetros de distância e alheio ao drama manauara, o então presidente Jair Bolsonaro também teve um início de 2021 inesquecível, segundo mostram os dados tornados públicos com a quebra do sigilo do cartão corporativo da Presidência da República. Em férias no balneário paulista de Guarujá, Bolsonaro torrou pouco mais de 493 mil reais somente em hospedagem, mais de 60 mil reais por dia. Na semana anterior, a última de dezembro de 2020, outros 157,5 mil reais foram debitados no cartão por seis dias em hotéis no litoral catarinense, parte do montante dedicado ao aluguel de jet skis.

O escárnio com o sofrimento do povo no pior momento da crise sanitária, vindo daquele que avisou não ser coveiro, não chega a surpreender e apenas reafirma a tibieza do caráter do ex-capitão. Mas a divulgação dos gastos chamou atenção para o exagero nas despesas, que, além das diárias de hotel, incluem vultosos gastos em restaurantes, supermercados e padarias. Somadas todas as despesas, as férias de 2021 de Bolsonaro – uma em meio às 18 licenças para descansar que tirou ao longo do mandato – custaram aos cofres públicos 700 mil reais. Em face do descalabro, o deputado federal Elias Vaz, do PSB, encaminhou ao Tribunal de Contas da União um pedido de investigação por mau uso do cartão corporativo. “Há evidências de fraude. Ou houve gasto em duplicidade ou foram tiradas notas frias que não correspondem ao serviço realmente prestado ou ao produto realmente adquirido”, denuncia o parlamentar, que assumiu esta semana o posto de secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.

Em férias no balneário paulista de Guarujá, Bolsonaro torrou pouco mais de 493 mil reais somente em hospedagem

Vaz ressalta que os gastos registrados no cartão de Bolsonaro durante suas férias de verão não incluem o eventual pagamento de hospedagem e refeição para o pessoal da segurança ou outros assessores, estipulado pelo Gabinete de Segurança Institucional em 202 mil reais. “A estes são pagas diárias pelo governo exatamente para custear hospedagem e refeição. Os valores são depositados diretamente na conta do servidor.” O novo secretário do ministro Flávio Dino questiona: “No meio de suas férias, Bolsonaro convidou um batalhão de gente para lanchar em uma padaria? Ou, inexplicavelmente, convidou um batalhão de gente para se hospedar no mesmo hotel? Se essas notas não estão de acordo com o que realmente aconteceu, é crime. É isso que precisa ser investigado. Cabe à sociedade perguntar com que, com quem e como Bolsonaro gastou esse valor somente em diárias de hotel”. Para completar a lista de aparentes ilegalidades, há uma despesa no Rio de Janeiro efetuada no mesmo dia em que Bolsonaro estava em Santa Catarina. “Quem estaria usando o cartão? Será que bancou férias de outras pessoas da família? É uma verdadeira farra.”

O repugnante exemplo das férias em janeiro de 2021 é apenas um entre tantos que despontam ao se analisarem os dados agora disponibilizados do cartão corporativo de Bolsonaro. Em quatro anos de mandato, as despesas totalizaram 27,6 milhões de reais e revelam desvios éticos, como, por exemplo, os 678 mil reais gastos em itens de alta gastronomia ou a cessão do cartão para dois de seus filhos fazerem despesas de 63 mil reais em um animado passeio em ­Goiânia. E também aparentes ilegalidades como o gasto de 8 mil reais em uma única ida a uma sorveteria em Porto Alegre ou a série de 20 pagamentos com valores entre 6 mil e 9,5 mil reais feitos a uma mesma padaria em São Paulo. O Ministério Público junto ao TCU também pediu a abertura de investigações. A ideia é verificar se Bolsonaro utilizou o cartão também para irrigar dinheiro à sua base, uma vez que em dias de motociata as despesas chegavam a 1,5 milhão de reais. Outra linha a ser investigada é o incremento do uso do cartão em 2022, durante a campanha eleitoral, quando foi registrada uma despesa média diária de 100 mil reais.

“A Lei de Acesso à Informação voltará a ser cumprida”, promete Vinícius Carvalho, da CGU – Imagem: Redes sociais

A divulgação dos dados do cartão corporativo foi feita pela Secretaria-Geral da Presidência com base em um pedido de informações protocolado pela agência Fiquem Sabendo. Trata-se de um tira-gosto antes da prometida quebra dos diversos sigilos de cem anos impostos por Bolsonaro. Não houve dificuldade no atendimento do pedido porque as informações já estavam disponíveis após uma determinação do TCU publicada em novembro do ano passado. “O governo anterior informou ao Tribunal que estava cumprindo a decisão e colocou no site as informações relativas aos governos de 2013 a 2018, sobre as gestões de Lula, Dilma e Temer. No dia 6 de janeiro, após a conclusão do mandato de Bolsonaro, foram também disponibilizadas as informações do período 2018 a 2022”, informa a Controladoria-Geral da União.

A divulgação das despesas reflete uma significativa mudança de postura por parte do governo federal, que desde janeiro passou a atender aos inúmeros pedidos com base na Lei de Acesso à Informação solenemente ignorados durante o mandato do ex-capitão. “A LAI voltará a ser cumprida e o Portal da Transparência voltará a desempenhar o seu papel. Não há democracia sem um Estado transparente”, afirma o ministro da CGU, Vinícius Marques de Carvalho, explicitando a nova filosofia de governo. Foi criado um grupo de trabalho para analisar os 65 mil pedidos de acesso à informação negados total ou parcialmente pelos órgãos da administração pública federal ao longo dos últimos quatro anos. “Quando se fala em sigilo de cem anos, se dissemina muito a ideia de que houve um decreto ou ato normativo único do governo Bolsonaro com essa determinação. Mas, na verdade, o que houve foram sucessivas decisões de negativas a pedidos de acesso, sob o argumento de proteção de dados pessoais, que, de fato, devem ser protegidos. O problema é que se passou a utilizar essa restrição de forma generalizada”, explica o ministro a CartaCapital.

Na fila dos sigilos a serem derrubados, o processo de negociação da vacina covaxin

Dados compilados pela Transparência Brasil revelam que foram impostos por Bolsonaro sigilos de cem anos a 1.108 itens, dos quais mais de um terço deles (413) “não apresentaram justificativa que atendesse à previsão legal”, segundo a organização. Em alguns itens específicos, os pedidos ignorados se multiplicaram e, dado o enorme volume de informações, a CGU vai trabalhar a partir de recortes temáticos. “Vamos analisar os casos que chegaram até a terceira instância recursal e tiveram a negativa de acesso mantida. Cerca de 2,5 mil casos chegaram à CGU na forma de recurso, dos quais perto de 1,3 mil tiveram a negativa de acesso mantida. Dentre esses, vamos reexaminar os casos de alta repercussão, cujo entendimento servirá como referência para toda a Administração Pública Federal”, acrescenta Carvalho.

Ainda está sendo estudada a melhor forma jurídica de levar adiante esse processo de revelação. Existe no governo o temor de que as quebras de sigilo efetuadas com base na LAI venham a ferir a Lei Geral de Proteção de Dados, em vigor desde 2020 com o objetivo de evitar o vazamento de informações pessoais de usuários de sites e plataformas. As duas leis não são, porém, incompatíveis, alerta o advogado Rafael Valim, doutor em Direito Administrativo e especialista no tema: “Geralmente se coloca uma oposição absoluta entre a LAI e a LGPD. Este é um falso dilema, porque há várias formas de garantir o direito de acesso à informação pública e, ao mesmo tempo, preservar as informações pessoais e a privacidade das pessoas”, diz. Ele cita a chamada “anonimização”, quando não se divulga o nome da pessoa que praticou determinado ato ou que tem determinada informação: “Você oculta o que pode ofender a privacidade e a imagem das pessoas, mas dá à sociedade o acesso à informação de relevância pública”.

“Há evidências de fraude”, denuncia o deputado Elias Vaz, hoje secretário do Ministério da Justiça – Imagem: Pablo Valadares/Ag. Câmara

Valim avalia que “será possível fazer a conciliação desses dois valores constitucionais” nos casos que estão sendo noticiados sobre os sigilos impostos pelo governo Bolsonaro. Já Vinícius Carvalho afirma que tudo será minuciosamente examinado, caso a caso, pela CGU. O ministro esclarece que qualquer dado pessoal não pode ser classificado como sigiloso, mas somente ser objeto de restrição de acesso: “Trata-se de outra categoria de proteção. A LAI previu, antes da existência da LGPD, a forma de proteger esse dado pessoal. Não é qualquer dado pessoal, é aquele dado relativo à intimidade, privacidade, imagem e honra”.

Com a nova postura governamental, tudo indica que as normas sobre proteção de dados não serão um impeditivo para que se quebre o sigilo imposto por Bolsonaro naqueles temas que extrapolam a privacidade individual e, de fato, são de interesse nacional. Na fila dos sigilos a serem derrubados estão itens que prometem trazer novas dores de cabeça ao ex-capitão e seus aliados. Um deles diz respeito às tratativas internas do governo para a aquisição da vacina indiana Covaxin durante a pandemia, processo no qual houve a prática de corrupção, segundo a CPI da Covid. Outro item trata do processo sofrido pelo ex-ministro Eduardo Pazuello, o mesmo que negligenciou oxigênio ao povo amazonense no auge da pandemia, no verão de 2021, por ter participado de atos políticos ao lado de Bolsonaro quando ainda era general da ativa. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Segredos de liquidificador”

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