

Opinião
Intolerável agressão
Não há silêncio admissível, sob pena de anuência dolosa com o golpismo


Uma semana após a posse de Lula, insuflados por uma intensa retórica antidemocrática e pelo eloquente silêncio do ex-presidente Bolsonaro, atos golpistas insurgiram-se contra a democracia, a honorabilidade das instituições da República e o patrimônio público. Ficamos todos em choque com o nível de barbárie mostrado em imagens produzidas não só pela imprensa, mas pelos próprios invasores, que, para além da quebradeira e destruição generalizadas, não demonstraram qualquer pudor em vandalizar relíquias artísticas, como o famoso quadro de Di Cavalcanti, e deixar seu rastro escatológico por onde passaram.
Símbolos da democracia e dos poderes constituídos da República brasileira foram, sem precedentes na nossa história, desafiados pelos atos de violência que visaram, para além de mero inconformismo com o processo eleitoral que elegeu Lula, implementar um golpe de Estado e abolir o Estado Democrático de Direito. Fundamentados na pretensa liberdade em exteriorizar anseios autoritários, objetivou-se, ironicamente, fulminar as bases que asseguram a própria liberdade em apregoar até mesmo absurdos.
A democracia é um dos maiores valores conquistados pelas sociedades políticas contemporâneas. É a democracia que garante a todos, em iguais condições, a participação no processo público desencadeador da eleição daqueles que, por meio da provisória e instrumental investidura em funções públicas, cumprirão determinados deveres.
Não há, seguramente, valor supremo senão a democracia. Lamentável que sejamos exigidos a afirmar o óbvio. Entretanto, a democracia, ainda que valor supremo e alicerce das sociedades e dos Estados contemporâneos, costuma ser, especialmente nos países de capitalismo periférico ou de modernidade tardia, como o Brasil, um estado de coisas frágil e constantemente desafiado.
Os vícios e a ignorância são relativamente inerentes à condição humana. Entretanto, até mesmo o instinto de sobrevivência do homem – o mesmo que o retirou do estado de selvageria e barbárie – conferiu-lhe algum intelecto para, afastando-se da imbecilidade e aproximando-se do discernimento razoável, constatar que os porões da autocracia são inaceitáveis.
E é por isso que o dia de 8 de janeiro de 2023 ficará marcado como aquele que registrou o maior ato de agressão à democracia brasileira, desde a chamada redemocratização da década de 1980. Trata-se de uma tragédia para nossa gente, sempre posta no atraso e na fome por nossas elites bárbaras.
O repúdio não é suficiente. Não se pode admitir tamanho ultraje e ameaça à democracia. É fundamental que todos os poderes constituídos e a sociedade organizada respondam imediata e prontamente. Apenas o governo federal e o Supremo Tribunal Federal, isolados, não são suficientes para garantir a sobrevivência da democracia e do nosso pacto civilizatório.
Todas as instituições garantidoras do Estado Democrático de Direito, da segurança e do patrimônio públicos e, ainda, da ordem pública devem agir. A sociedade organizada deve, em tutela dos poderes constituídos, consignar, manifestamente, seu apoio irrestrito e incondicional aos valores supremos que nos unem. Não há silêncio admissível, sob pena de anuência dolosa com o golpismo.
O repúdio não é suficiente. A sociedade civil tem o dever de reagir aos ataques de 8 de janeiro
Não se pode admitir qualquer letargia ou omissão, como ocorreu dolosamente por parte do governo do Distrito Federal e de suas instituições de segurança pública, diante dos atos golpistas. Por isso, foi acertada a decretação da intervenção federal na área de segurança pública distrital pelo presidente Lula e, ainda, a adoção da medida cautelar de afastamento temporário do governador do Distrito Federal pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF.
O grave comprometimento da ordem pública e a severa afronta ao nosso Estado Democrático de Direito são fundamentos constitucionais mitigadores da autonomia federativa, legitimando a medida corretamente adotada. O presidente Lula valeu-se, justificadamente, de previsão consubstanciada na nossa Constituição para reagir prontamente às graves ilicitudes dos atos golpistas e preservar os valores supremos da democracia.
Os órgãos estatais de controle devem, agora, apurar responsabilidades administrativas, cíveis e criminais que podem incluir, em especial, o enquadramento nos crimes de dano ao patrimônio público, de prevaricação, de formação de organização criminosa e, em especial, dos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado. Não há concessões possíveis quando está em jogo o pacto democrático.
Também será necessário, neste percurso de uma reconstrução democrática plena, entender como construir estratégias de informação e inteligência eficientes, que sirvam de ferramentas de enfrentamento à desinformação e à reação truculenta de grupos golpistas que não se conformam com a vitória de Lula e, principalmente, com a ideia de um país soberano e diverso, liderado por um governo que trabalha por justiça e paz social. •
*Advogado e professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Intolerável agressão”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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