Política

assine e leia

Pela culatra

Após o golpe frustrado, Bolsonaro ficou ainda mais isolado e suscetível à prisão

Pela culatra
Pela culatra
Foto: Sergio Lima / AFP
Apoie Siga-nos no

“Esse genocida não só provocou isso, como ainda está estimulando nas redes sociais.” A veemência do presidente Lula ao apontar Jair Bolsonaro como responsável pelos atos de terrorismo praticados na invasão da Praça dos Três Poderes, em Brasília, reacendeu a discussão sobre a possibilidade de punir o ex-presidente pelos diversos crimes e ameaças contra a democracia que caracterizaram o seu mandato e culminaram no vergonhoso episódio de depredação do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e da Suprema Corte por baderneiros de extrema-direita. Na opinião de diversos atores dos meios jurídico e político, o atentado ao Estado Democrático de Direito ocorrido no domingo 8 foi a gota d’água para que se leve Bolsonaro de uma vez por todas ao banco dos réus e pode também significar o fim de seu projeto de voltar a disputar a Presidência da República em 2026.

O caminho jurídico natural para a responsabilização de Bolsonaro é a instauração de um inquérito independente. “É necessária uma investigação autônoma sobre os delitos em Brasília que apure a responsabilidade direta ou indireta de Bolsonaro e sua família”, avalia o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do grupo Prerrogativas. A responsabilidade política do ex-presidente pelo atentado é evidente, mas é preciso também identificar sua responsabilidade jurídica, explica. “Precisamos chegar aos grupos que financiaram esses atos e verificar a relação deles com Bolsonaro. E, a partir daí, buscar uma responsabilização criminal e civil.”

Para o jurista e professor Lenio ­Streck, não será difícil comprovar a ligação de Bolsonaro com os atos golpistas de domingo. “Alguém pode ser coautor de um crime pelo instigamento. Chamadas de celulares e mensagens de WhatsApp constituirão provas da ligação não só de Bolsonaro como de qualquer outro líder, deputado ou empresário com os atos do dia 8.” Carvalho acrescenta que a influência do ex-capitão sobre a invasão vai além de incentivos diretos: “No Direito Penal brasileiro, você responde por aquilo que faz e pelo que deixa de fazer. A omissão é uma ação negativa. Bolsonaro inoculou ódio em parte da população brasileira, incentivou os atos golpistas que atentaram contra a democracia. Não agiu em momento algum para tentar evitar a tragédia anunciada”.

O ex-capitão precisa renovar o visto nos EUA até o fim do mês, mas deputados democratas se opõem à iniciativa

Outra frente que buscará identificar a ligação de Bolsonaro com os terroristas é a CPI a ser instalada no Congresso. Um requerimento apresentado pela senadora Soraya Thronicke, do União Brasil, já ultrapassava na manhã de quarta-feira 11 o número mínimo de 27 assinaturas necessárias para a criação da Comissão. “É urgente a apuração das responsabilidades pelos atos extremistas e também das possíveis omissões de autoridades responsáveis”, diz a parlamentar. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do PSD, disse considerar “muito adequado” o pedido de CPI e sinalizou que dará sequência ao seu trâmite na primeira semana de fevereiro.

Na Câmara, onde são necessárias 171 assinaturas para a criação de uma CPI, a coleta de apoio está sendo feita pelos partidos de esquerda. “A partir da orientação que deu a toda essa prática golpista, Bolsonaro vai acabar preso”, prevê o deputado Rogério Correia, do PT, que protocolou um pedido de abertura de CPI junto a outros parlamentares da legenda. A criação de uma CPI mista não está descartada.

Qualquer responsabilização de Bolsonaro, entretanto, se tornará inócua se o ex-presidente, que está na cidade norte-americana de Orlando desde a antevéspera da posse de Lula, permanecer fora do Brasil.

Na segunda-feira 9, o senador Renan Calheiros, do MDB, invocou o Tratado de Extradição entre EUA e Brasil para pedir a “prisão preventiva” de Bolsonaro. Renan pediu que o STF determinasse um prazo de 72 horas para que o presidente retornasse ao País. Na realidade, não existe base legal para uma extradição, que só poderia ser pedida após a decretação de prisão preventiva ou eventual condenação de Bolsonaro em um dos inúmeros processos que investigam sua conduta. “Por hora a extradição não é possível. Ao final de um processo, pode ser uma medida – e, talvez, a melhor medida – a ser tomada. Em todo caso, neste momento há um constrangimento que pode fazer com que ele volte”, avalia Carvalho, ao lembrar que o ex-capitão precisa renovar o seu visto até o fim do mês.

Renan Calheiros defende a prisão preventiva de Bolsonaro para solicitar aos EUA sua extradição – Imagem: Edilson Rodrigues/Ag.Senado

“O visto de permanência pode ser revogado pelo governo norte-americano, o que fará com que o ex-presidente seja obrigado a deixar o país e retornar ao Brasil”, acrescenta Streck. “Essa possibilidade também perpassa pelos políticos daquele país e há movimentação do Partido Democrata nesse sentido.” De fato, no Parlamento dos EUA deputados democratas como Alexandria ­Ocasio-Cortez, entre outros, abraçaram publicamente a proposta de enviar “o amigo de Trump” de volta para casa. “Bolsonaro está fugindo e usando o nosso país para se esconder da responsabilização por seus crimes”, disse a parlamentar. Seu colega Joaquín Castro foi direto ao ponto: “Terroristas de outros países não devem ter permissão para usar o ‘Manual Trump’ de como minar a democracia”.

Ciente da relação mimética entre os ex-presidentes de Brasil e EUA, Joe ­Biden colocou-se à disposição do governo brasileiro: “As instituições democráticas do Brasil têm todo o nosso apoio. A vontade do povo brasileiro não deve ser abalada”, disse o presidente dos EUA, acrescentando estar “ansioso para continuar a trabalhar com Lula”. O caminho para convidar Bolsonaro a dar no pé passa pela expiração de seu visto, o chamado Visto A, concedido a autoridades de Estado: “Se alguém entrou nos EUA com Visto A e não está mais engajado em atividades oficiais, fica incumbido de deixar os EUA ou pedir uma mudança de visto em até 30 dias”, informa o Departamento de Estado norte-americano.

No congresso, uma cpi pode expor o elo do ex-capitão com os terroristas

“Os EUA têm suas próprias regras e prazos para o devido processo migratório. É fato público que Bolsonaro entrou no território americano com um visto de chefe de Estado que venceu a validade quando ele deixou o posto”, observa Paulo Abrão, ex-secretário Nacional de Justiça do Brasil e ex-secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ele ressalta ser preciso esperar os 30 dias para que se possa determinar a situação migratória de Bolsonaro e se a possibilidade de deportação existe de fato: “Há procedimentos de pedido de refúgio e outros mecanismos de proteção a pessoas que demonstram necessidades. Para isso, é preciso demonstrar o fundado temor de perseguição por motivos muito nítidos. Ou demonstrar, com base na Convenção de Combate à Tortura, que se enfrenta o risco de tratamento desumano e cruel. É um pedido que precisaria ser feito pelo próprio Bolsonaro e seria avaliado por juízes técnicos migratórios”.

Professor visitante na Brown ­University, Abrão não descarta a possibilidade de Bolsonaro prestar contas à própria Justiça dos EUA. “Se comprovado que ele se envolveu na conspiração para o cometimento de crimes no Brasil desde o território americano, ele pode responder também às leis penais locais que eventualmente criminalizam essa conduta”, diz. A proximidade com Trump, acrescenta, não é suficiente para contornar o problema. “Talvez Bolsonaro faça uma aposta no retorno de Trump ao governo para buscar proteção política nesse contexto. Mas, se por qualquer razão ele seguir nos EUA, seu destino político estará vinculado à Justiça.”

O deputado Rogério Correia, do PT, e a senadora Soraya Thronicke, do União Brasil, trabalham para emplacar uma investigação sobre os financiadores e mandantes do golpe fracassado – Imagem: Gustavo Bezerra/PT na Câmara e Jefferson Rudy/Ag.Senado

Se o capital político do ex-capitão nos EUA é duvidoso, no Brasil ele tende a se esvair após a frustrada tentativa de golpe. “Não sei quais cálculos Bolsonaro fez, mas a invasão o enfraqueceu completamente e o deixou isolado, como mostra a ação de rompimento dos governadores que pegaram carona no bolsonarismo desde 2018 e emergiram a partir dessa bandeira. Foi uma derrota fragorosa”, diz Luiz Eduardo Motta, diretor do Laboratório de Estudos sobre Estado e Ideo­logia da UFRJ. “Haverá uma diminuição do impacto de Bolsonaro sobre parte dos seus eleitores. Determinados setores são antiesquerdistas e antipetistas, mas não coadunam com ataques às instituições republicanas.” O imperativo político de se afastar do criador foi demonstrado pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, um dos que caminharam ao lado de Lula em repúdio à depredação das sedes dos Três Poderes no dia seguinte ao atentado. “Era muito importante estar aqui presente para prestar solidariedade aos poderes constituídos. Esta reunião de hoje significa que a democracia brasileira, depois dos episódios de ontem, vai se tornar ainda mais forte”, declarou.

Pisando em campo minado, Bolsonaro sentiu-se mal no dia seguinte à invasão dos Três Poderes e foi internado com quadro de obstrução intestinal em um hospital de Orlando. O ex-presidente teria deixado a unidade na terça-feira 10 contra a orientação dos médicos, mas não se sabe se a pressa é para fazer as malas e voltar ao Brasil. No Senado, o filho Zero Um, Flávio, chamou de “narrativa mentirosa” o possível envolvimento do pai com os atos golpistas e disse que Bolsonaro está “lambendo as feridas” e “praticamente incomunicável”. Se voltar ao País, o ex-presidente terá contas jurídicas e políticas a ajustar. “O que vimos foi uma espécie de estupro da República. Grande parte da mídia, do Judiciário e do Legislativo, aí incluídos setores da direita, não corrobora e não se identifica com esse tipo de prática. Esse processo levará a um isolamento crescente do ex-capitão. O tiro saiu pela culatra. Esse golpe malsucedido só fortaleceu ainda mais o governo Lula”, avalia Motta. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pela culatra”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo