Política

assine e leia

Mitômanos em pânico

Diante da fuga de anunciantes e de um procurador disposto a punir a rede por difundir fake news e incitar atos golpistas, a Jovem Pan volta a afastar seus radicais comentaristas

Mitômanos em pânico
Mitômanos em pânico
Tutinha sai de cena, Alexandre Garcia permanece - Imagem: Redes sociais
Apoie Siga-nos no

“As pessoas estão revoltadas com a forma como o processo eleitoral foi conduzido, com a truculência com que certas instituições têm violado a nossa Constituição”, disse Paulo Figueiredo na transmissão do Capitólio nativo pela Jovem Pan News. Neto do ditador João Baptista Figueiredo, o comentarista é velho conhecido das páginas policiais. Em 2019, chegou a ser preso pela Interpol em Miami, acusado de pagar propinas a dirigentes do BRB, banco público do Distrito Federal, para financiar a construção de um hotel no Rio de Janeiro associado a Donald Trump. A despeito do histórico desabonador, a proximidade com o clã Bolsonaro habilitou-o a pontificar sobre qualquer tema na rede. No domingo 8, ele considerou a depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e da Suprema Corte uma “ideia estúpida”, a ensejar uma perseguição implacável aos rebelados contra autoridades “surdas ao clamor popular”. A ponderação contrasta, porém, com o dilema que ele próprio conjecturou semanas antes, no programa Os Pingos nos Is: os patriotas deveriam aceitar uma “eleição sem legitimidade” ou partir para o confronto? Era uma pergunta retórica: “Então, que tenha guerra civil, pô!”

Enquanto o neto do general temia a repercussão negativa das vidraças quebradas e obras de arte mutiladas, o colega Fernando Capez avaliava tratar-se de uma “manifestação claramente pacífica”, embora as imagens o traíssem. “Um ou outro vândalo se infiltra, mas 99,9% das pessoas estão ali expondo a sua indignação”, insistia. Acolhido na Jovem Pan no fim de 2021, após ser dispensado pela CNN Brasil por defender “tratamento precoce” da Covid-19 com drogas ineficazes, Alexandre Garcia viu no episódio uma rebelião contra a tirania: “Nos últimos dois meses, as pessoas ficaram paradas esperando por tutela das Forças Armadas. A tutela não veio, resolveram tomar a iniciativa. Não sou conduzido, mas conduzo. É o que está na bandeira da cidade de São Paulo”, discursou. “Quem está aí é gente que veio do Brasil inteiro representando o povo.”

A delirante cobertura do motim bolsonarista foi a gota d’água para o Ministério Público Federal instaurar, na segunda-feira 9, inquérito para apurar a conduta da rede de emissoras de rádio e tevê na disseminação de fake news e na incitação de atos golpistas. No mesmo dia, Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, o Tutinha, renunciou à presidência do Grupo Jovem Pan, confiando o cargo ao executivo Roberto Alves de Araújo, à frente dos processos de transformação digital da companhia desde 2013. Herdeiro da empresa adquirida nos anos 1940 pelo avô, Paulo ­Machado de Carvalho, Tutinha sentiu o baque da fuga de anunciantes após uma campanha de boicote movida pela ONG ­Sleeping Giants. Cobradas publicamente por financiar a desinformação e o discurso antidemocrático, ao menos 19 marcas deixaram de anunciar no conglomerado de mídia, entre elas Burger King, ­Electrolux, Natura, Oi, ­Ponto Frio, TIM e Trivago.

Ao instaurar o inquérito, o procurador Yuri Corrêa da Luz observa que a Jovem Pan veiculou numerosos conteúdos desinformativos “com potencial para minar a confiança dos cidadãos na idoneidade das instituições judiciárias brasileiras e na higidez dos processos democráticos por elas conduzidos”, a incluir informações enganosas sobre a segurança das urnas e sobre a suposta inviabilidade de auditoria. Luz deu prazo de 15 dias para a Jovem Pan enviar informações detalhadas sobre sua programação e dados pessoais dos apresentadores e comentaristas de algumas das atrações, a exemplo do ­Morning Show e do Jovem Pan – 3 em 1. O documento determina ainda que a empresa não faça qualquer alteração nos canais mantidos no YouTube, como a exclusão de vídeos. Ao YouTube, o MPF ordenou a preservação da íntegra de todos os vídeos publicados desde janeiro de 2022 até hoje.

A audiência e as verbas recebidas do governo federal cresceram de forma exponencial durante a gestão Bolsonaro

Muito antes das eleições, a Jovem Pan converteu-se no principal braço de mídia do bolsonarismo. A guinada rendeu frutos para a rede, beneficiada com o crescimento exponencial de audiência, das verbas recebidas do governo federal e dos patrocínios de empresas comandadas por apoiadores do então presidente. Na Grande São Paulo, a Jovem Pan FM assumiu a liderança na audiência, alcançando 3,2 milhões de ouvintes por mês, segundo a ­Kantar Ibope Media. Na tevê por assinatura, desbancou a CNN Brasil e chegou a ameaçar a liderança da Globo News no período eleitoral. Em 2021, o grupo faturou 101,6 milhões de reais, 30% a mais que no ano anterior. A verba publicitária da União passou de 840 mil reais em 2018, último ano de Michel Temer, para 2,5 milhões em 2021, segundo a revista Piauí.

O êxito comercial só começou a ser abalado com o cerco judicial à indústria da mentira e a recente campanha movida pelo Sleeping Giants. No período eleitoral, a Jovem Pan foi condenada diversas vezes por favorecer a campanha de Jair Bolsonaro e semear fake news contra Lula. Desrespeitando ordens do Tribunal Superior Eleitoral, Augusto Nunes, uma das vedetes da rede bolsonarista, insistia em chamar o candidato petista de “ladrão”, “descondenado” e “amigo de ditadores”. Um dia após a vitória de Lula, acabou demitido, na companhia de Caio Coppola e Guilherme Fiúza. “A desobediência civil não sairá do meu bolso”, justificou Tutinha.

As demissões não resultaram em mudança da linha editorial. Na diplomação de Lula, em 12 de dezembro, o apresentador do Linha de Frente, Tiago Pavinatto, chamou Alexandre de Moraes de “covarde” e debochou de seu discurso. Na esteira dos violentos ataques em Brasília naquele dia, quando bolsonaristas depredaram 15 ônibus, os atos de vandalismo foram creditados a “infiltrados”. Dias depois, Zoe Martinez defendeu a destituição dos ministros do STF pelas Forças Armadas e Figueiredo convocou os patriotas para a “guerra civil”. Somente no fim do ano o grupo de mídia esboçou um recuo, em editorial: “a Jovem Pan não faz coro e não endossa qualquer lampejo golpista”. Palavras ao vento, como se viu na cobertura da intentona bolsonarista.

Nunes, Fiúza e outros egressos da Jovem Pan depois migraram para a Revista Oeste, panfleto bolsonarista abrigado na internet desde 2020 e que acaba de receber um gancho do YouTube. O programa Oeste Sem Filtro, um dos favoritos dos extremistas, não poderá ser veiculado na plataforma por 15 dias. Segundo comunicado de Nunes pelo Twitter, a justificativa para o veto foi “conteúdo nocivo”. Alternativamente, a revista transferiu o canal para a canadense Rumble. É possível que a equipe da publicação seja reforçada em breve. Na desesperada tentativa de limpar sua imagem, a Jovem Pan acaba de afastar os comentaristas Rodrigo Constantino, Paulo Figueiredo e Zoe Martínez, mencionados no inquérito recém-aberto pelo MPF. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mitômanos em pânico”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo