

Opinião
Saúde é democracia
O movimento que articula a nova direita em âmbito internacional coloca em risco não só o Estado Democrático de Direito, mas os sistemas universais de saúde


Entre 1988 e 2016, o SUS foi construído como a resultante de um contrato social que atravessou governos. Ergueu-se como política de Estado para prestar ações e serviços com base em responsabilidades compartilhadas entre entes federativos e teve a participação social – por meio de conferências e conselhos de saúde nas três esferas de governo – como um elemento constitutivo.
Sua expansão possibilitou progressos fundamentais em direção à garantia de acesso universal. Vários estudos apontam sua eficácia para reduzir desigualdades sociais e melhorar os resultados de saúde, incluindo a diminuição de mortalidade infantil, hospitalizações evitáveis e mortalidade evitável.
Estudos recentes mostram ainda seus benefícios na redução das desigualdades raciais e na proteção contra os efeitos da crise econômica de 2015. Em 2016, a expectativa de vida dos brasileiros chegou a 75 anos e 9 meses, vinda de 65 anos e 3 meses, em 1990. Nesse mesmo período, a mortalidade infantil caiu de 53,4 para 13,3 óbitos anuais.
Nosso Programa Nacional de Imunizações (PNI), com cobertura vacinal superior a 95% das populações-alvo, assim como programas exitosos a exemplo dos de transplantes, HIV/Aids, hepatites e tabagismo tornaram o SUS uma referência internacional. Se não fosse o SUS, teríamos tido um resultado ainda mais trágico no enfrentamento da pandemia.
A participação no Grupo Técnico da Saúde na transição governamental, no fim de 2022, me permitiu constatar em profundidade como um ciclo de governo de extrema-direita, antidemocrático, agiu para desconstruir as bases do sistema nacional de saúde.
O diagnóstico sobre a atuação do Ministério da Saúde indica um verdadeiro caos, ainda que não seja uma novidade, dada a forma criminosa como o governo atuou no enfrentamento da pandemia, resultando em mais de 693 mil óbitos por Covid-19.
Bolsonaro trocou ministros, desmontou a equipe técnica do órgão e tentou interferir na Anvisa. Substituiu a gestão técnica e científica por uma linha de comando militar. Tornou o Ministério da Saúde uma fonte disseminadora de fake news, apregoando tratamentos ineficazes e incitando a população a não usar máscaras e não praticar o distanciamento físico.
De acordo com o TCU, ocorreu um “apagão cibernético”, com perda de dados dos cidadãos, inclusive sobre as vacinas para Covid-19, caracterizando uma total desestruturação dos sistemas de informação sob responsabilidade do ministério.
O descaso resultou, além de tudo, no acúmulo de pacientes em filas intermináveis, fruto da diminuição acentuada de consultas, cirurgias e diagnósticos, retardando o início do tratamento de doenças, como as cardiovasculares e as neoplasias. Levou ainda à explosão de casos de transtornos mentais e uso abusivo de álcool e outras drogas.
O enfraquecimento da capacidade de coordenação nacional do SUS, de articulação de políticas e programas de saúde e a fragilização da autoridade sanitária nacional resultou não só em uma resposta débil à pandemia, mas na desestruturação de políticas e programas bem-sucedidos, como o Programa Nacional de Imunizações (PNI), de Atenção Básica e do Mais Médicos, de Assistência Farmacêutica (Farmácia Popular), Aids, Saúde Mental e Saúde da Mulher, entre outros.
A análise desse ciclo de governo de extrema-direita, recentemente concluído, indica como é possível, em curto espaço de tempo, avançar na desconstrução de um sistema nacional de saúde de caráter universal. Isso se dá no bojo de alianças e interesses político-clientelistas e privatistas de mercado.
A atuação político-institucional fundamentada na adoção do negacionismo e na ocupação do aparelho de Estado por forças obscurantistas expressa a edificação de um modo de governar que adotou políticas de austeridade fiscal de longo prazo. Tal ação potencializou o desfinanciamento público e enfraqueceu e desorganizou o SUS, resultando em grave desestruturação da sua governança, com piora significativa nos indicadores e na capacidade de resposta às necessidades de saúde da população.
O que vislumbramos no Brasil deve servir como aprendizado, inclusive para outros países, uma vez que há em curso um movimento internacional e sinalizações de avanços de regimes populistas de extrema-direita.
Trata-se de um movimento que articula a nova direita em âmbito internacional, e que coloca em risco o Estado Democrático de Direito, as instituições e as políticas sociais inclusivas, como os sistemas universais de saúde. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Saúde é democracia”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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