Artigo
Sinônimo de Brasil
Cidadão fiel da Vila Belmiro, sempre jogou no seu time do coração e do gramado do Santos saiu somente para encerrar a carreira no exterior


Houve uma coincidência na definição de Jô Soares e do acima assinado, absolutamente involuntária de ambas as partes: dizíamos que Pelé é sinônimo de Brasil. Um rei sem sucessor na terra do futebol. Com Pelé de camiseta canarinho o Brasil nunca perdeu, do Mundial da Suécia, em 1958, ao do México, em 1970, contra a Itália, batida por 4 a 1. E ele ali, imponderável e inspirador. Até um gol de cabeça neste jogo Pelé fez, ao pular bem mais alto do que seu marcador, dono de estatura alentada. Com a expressão da típica sabedoria infinita, um jornalista nativo apressou-se a informar sobre o baixo porte do nosso autor de mais de mil gols e, solene, soletrou que tinha pouco mais de um metro e sessenta.
Estava errado, obviamente, a altura certa era um e setenta e dois, mas em campo parecia um gigante, e de certa forma era, conforme constatei no primeiro jogo assistido logo após a minha segunda chegada ao Brasil. Tratava-se de um embate entre Santos e São Paulo e Pelé marcou quatro gols iguais. Ao partir do seu campo, semeou todos os adversários pelo caminho, entrou na área inimiga e ludibriou o arqueiro, sem a mais pálida chance de interceptar aquela estocada final. Pepe, endiabrado ponteiro-esquerdo, marcou mais duas vezes naquela goleada empolgante, a justificar até um certo espanto de minha parte.
Imagem: Acervo/New York Cosmos
Disse-me Sócrates, certa vez: “Pelé é o atleta perfeito”. Como tal ele deixou boquiaberto o mundo, para permanecer único até hoje. Tudo emanava de sua postura mágica, tudo no seu movimento manifestava-se com uma naturalidade implacável, na qual a velocidade tinha a sua necessária importância, mas o sestro era inigualável, patrimônio exclusivo. No Mundial do Chile, em 1962, machucou-se logo, mas a sorte brasileira foi poder contar com Garrincha excepcionalmente inspirado, a suprir com honra uma ausência que parecia fatal.
No Cosmos de Nova York fez questão de manter o número 10 na camiseta
Infelizmente, o futebol atravessou épocas amargas, por obra de dirigentes empenhados em manipular resultados. Pelé, contudo, já estava aposentado. E de resto o rei seria, em qualquer circunstância, incorruptível: o jogo fluía dele qual fosse imposição da natureza, como o trovão de pronto se segue ao raio desenhado no céu da tempestade. Em uma partida disputada em Milão, antes da Copa do Chile, Pelé teve de se haver com um marcador tinhoso, Giovanni Trapattoni, que mais tarde se tornaria treinador bem-sucedido na Alemanha e na seleção azzurra. A exibição de Pelé foi medíocre e apareceram sonhadores inclinados à crença de que surgira no gramado quem era capaz de parar o rei, tola esperança que Pelé logo se incumbiu de desfazer.
Ao seguir para o Cosmos, contratado a elevado preço, e por causa disso disposto a mudar de país ao cuidar pela primeira vez do pé-de-meia, Pelé foi para a terra de Tio Sam como formidável garoto-propaganda do futebol, reconhecimento que ninguém lhe nega, à luz da competitividade que os EUA ganharam nos embates internacionais. Pela primeira vez, ele cuidara das suas próprias finanças, assunto que até então assumira para ele pouca ou nenhuma importância.
Dois gols entregues à história: o primeiro contra a Itália no México, derrotada por 4 a 1. Abaixo, o nosso herói acaba de marcar seu milésimo gol – Imagem: Arquivo/AFP e Arquivo/Estadão Conteúdo
Quem não o dispensou de uma seleção ideal foi o jornalista João Saldanha, comunista declarado e, portanto, afastado da Seleção logo após ser definida a escalação às vésperas da revoada vitoriosa até o México. Sobraria a tarefa para Zagallo, o ex-ponteiro-esquerdo canarinho, já então considerado moderno por se antecipar às soluções ignoradas pelos titulares da posição. O México, graças em primeiro lugar ao desempenho de Pelé, foi o pedestal da fama do Brasil como terra do futebol. Na volta da Seleção após o tri, o ditador Emílio Garrastazu Médici recebeu os vencedores na Praça dos Três Poderes, em Brasília, e se permitiu empinar a redonda em algumas deploráveis embaixadas.
Estive com Pelé mais de uma vez. Em uma delas, ele era ministro dos Esportes do presidente Fernando Henrique Cardoso. Ficou-me a impressão de um cidadão consciente do seu papel e da sua influência, incapaz de dizer àquela altura que o povo brasileiro não sabe votar. A morte do craque definitivo me entristece bastante. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sinônimo de Brasil “
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