Mundo
O doutrinador
O papa Bento XVI viveu mais preocupado em defender os dogmas da Igreja Católica do que em se conectar com os fiéis


Dois velórios dividiram a atenção do mundo ao longo da semana. Não por acaso, os homenageados simbolizavam uma religião. Em Santos, uma multidão pisava em um santuário, o gramado da Vila Belmiro, para prestar homenagens a Pelé, chamado de rei, mas que não deixava de ser uma divindade, a maior, do futebol, cuja legião de fiéis ao redor do planeta supera o cristianismo, o islamismo e o budismo. No Vaticano, mais de 200 mil católicos oraram pela última vez por Bento XVI, o papa emérito, o primeiro de sua posição em seis séculos a renunciar ao posto em vida. Fosse um atleta do esporte bretão, Joseph Ratzinger seria um zagueiro de várzea, brutamontes, instruído a evitar o ataque dos adversários a pontapés e caneladas, embora cultivasse a imagem de intelectual e chamasse a atenção das revistas de moda pelo modo peculiar de se vestir – seus chapéus eram classificados de “extravagantes” e os sapatos exclusivos chegaram a ser confundidos com peças da maison Prada, especulação desmentida pelos assessores do pontífice. No campo teológico, era um legítimo cruzado.
A hagiografia tende a transformar em virtude a renúncia em 2013, justificada por problemas de saúde. Seria o derradeiro gesto de desprendimento de um sacerdote que se definia como “simples e humilde servo na vinha do Senhor”. Historiadores e cronistas católicos certamente oferecerão uma versão diferente. Em boa medida, durante oito anos de pontificado, Bento XVI colheu o que plantou. Ratzinger assumiu uma Igreja dividida, manchada por intrigas e escândalos, após a morte de João Paulo II, de quem foi o mais bravo vassalo. Como chefe da Congregação da Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício da Inquisição, levou a termo a incumbência de combater o relativismo e o “esquerdismo” na Cúria, parte da luta anticomunista travada pelo polonês Karol Wojtyla – guerra na qual o Banco do Vaticano “exorcizou” até o dinheiro sujo de mafiosos e ditadores em nome dos desígnios divinos de combater os gentios. Missão dada, missão cumprida, poderia repetir Ratzinger, integrante da juventude hitlerista antes de seguir o caminho da fé (a seu favor pesa o fato de que nenhum jovem alemão escapava dos serviços militares naquela época). A Teologia da Libertação na América Latina foi dizimada e os resultados estão aí. Apartada dos humildes e necessitados, concentrada na liturgia e nos dogmas, ao gosto do intelecto do então cardeal, a Igreja latino-americana perdeu progressivamente terreno para o neopentecostalismo. O Brasil, outrora “maior país católico do mundo”, tornou-se terreno propício à expansão evangélica.
Introspectivo e canônico, Bento XVI fez raras concessões, o que lhe valeu o apelido de “rottweiler de Deus”. Um ano depois de ser nomeado papa, durante palestra na Universidade de Regensburg, na Alemanha, recorreu a um imperador bizantino para ligar o Islã à violência. O discurso provocou protestos intensos em países muçulmanos e Ratzinger viu-se obrigado a pedir desculpas pelo “lamentável mal-entendido”. Em 2009, suspendeu, sob protestos da comunidade judaica e de autoridades alemães, a excomunhão de bispos tradicionalistas radicais, entre eles Richard Williamson, negacionista do Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial.
Seu pontificado será lembrado pela renúncia, a primeira em seis séculos
O pontífice tentou superar as controvérsias, mas não resistiu a dois escândalos incontornáveis: as crescentes acusações de abusos sexuais contra párocos e as revelações do Vatileaks, o vazamento de documentos oficiais que expuseram as intrigas palacianas e, pior, os escândalos financeiros na administração do incalculável patrimônio da Igreja. Apesar de ter tomado posições firmes, autorizado a investigação de crimes e afastado acusados de pedofilia, Ratzinger nunca conseguiu se livrar da imagem de conivência com os abusos. Na terça-feira 3, um tribunal alemão anunciou a manutenção de um processo contra o ex-papa mesmo após a morte. Bento XVI é acusado de acobertar casos de pedofilia na diocese de Munique. Os 85 anos de então pesaram e o papa inspirou-se em Gregório XII, que deixou o cargo em 1415 como parte da solução do cisma católico. Em 28 de fevereiro de 2013, quase dois meses depois de ter expulsado o mordomo Paolo Gabriele, acusado de vazar os papéis do Vatileaks, Ratzinger despediu-se dos fiéis na varanda de Castel Gandolfo, residência oficial. “Deixarei de ser papa, mas me tornarei um peregrino”, anunciou.
Na última década, Ratzinger viveu em autoexílio no mosteiro Mater Ecclesiae, localizado nos jardins do Vaticano. Morreu aos 95 anos, no último dia de 2022. Em entrevista ao jornal italiano La Repubblica, Georg Ganswein, seu secretário pessoal, afirmou que o pontificado do alemão foi assombrado pelo diabo e negou que os escândalos tenham influenciado a renúncia. “É óbvio, como diria o papa Francisco, que o mau da fita, o maléfico, o demônio, não dorme”, declarou. “Fica claro que ele tenta sempre atingir onde os nervos estão expostos e fazer o maior estrago possível. E senti-o muito contra o papa Bento XVI.”
Francisco dedicou a missa de ano-novo ao antecessor. “Hoje confiamos o amado papa emérito Bento XVI à Santíssima Mãe, para acompanhá-lo na sua passagem deste mundo para Deus”, orou. “Estamos todos unidos, com um coração e uma alma, a agradecer pelo dom deste fiel servo do Evangelho e da Igreja.” As homenagens duraram até a quinta-feira 5, quando o ex-pontífice foi sepultado. A renúncia do alemão Ratzinger e a escolha do argentino Jorge Bergoglio, que, torcedor do San Lorenzo, compreende os “mistérios” do futebol, equivale ao milagre da conversão da água em vinho. Os dilemas do catolicismo continuam vivos, mas Francisco deu uma guinada no estilo do pontificado: restabeleceu o princípio cristão de acolher quem sofre e denunciar quem abusa do poder. Sob seu papado, a Igreja mostra-se mais aberta, universal, empenhada em ouvir e dialogar em vez de doutrinar. A coragem e a simplicidade transformaram Bergoglio no estadista que Bento XVI almejava ser. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O doutrinador”
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