Cultura
A reinvenção de Bessie Smith
Jackie Kay mistura pesquisa histórica, memória pessoal e imaginação para recuperar a trajetória da blueswoman


A blueswoman Bessie Smith (1894-1937) era uma personagem complexa, uma superestrela autodidata cuja biografia é muitas vezes mais estranha que a ficção. Seus feitos se tornaram lendas. Smith era formidável. Supostamente, enfrentou sozinha uma tentativa da Ku Klux Klan de incendiar sua tenda de shows.
Smith cantou o sofrimento feminino e viveu as tragédias de suas canções, geralmente na ordem inversa. Jackie Kay, autora de Bessie Smith (DBA, 256 págs., 74,90 reais, tradução de Stephanie Borges), biografia eloquente e emotiva, destaca a frequência com que Smith escreveu letras com uma terrível presciência.
Originalmente publicado em 1997, o livro foi um empreendimento alegre e formalmente ousado. Em seguida, fez parte de uma série chamada Outlines, que buscava documentar “uma curta história não oficial, sincera e divertida da arte, vida e sexualidade lésbica e gay”.
Passados todos esses anos, Bessie Smith continua sendo um ato de testemunho íntimo, uma biografia sobre uma artista americana negra, bissexual e da classe trabalhadora escrita por uma célebre poeta escocesa que reconheceu a própria negritude e estranheza por meio de canções de Smith, seu mito e seu “belo rosto negro”.
Os pais adotivos de Jackie eram escoceses brancos comunistas que amavam blues e jazz. A música com que presentearam a filha ressoou profundamente e de inúmeras maneiras na jovem, fazendo-a se sentir “intimamente conhecida”.
Esta reedição oportuna de Bessie Smith, com uma nova introdução exaltando sua relevância contínua, mapeia parte da distância percorrida tanto pela indústria editorial quanto por Jackie Kay, hoje poeta laureada na Escócia. O tempo não esmaeceu a erudição criativa incansável do livro.
Misturando rigor acadêmico, autobiografia autoral e licença poética, a seleta bibliografia da obra reúne 22 títulos. Jackie traça o apogeu das blueswomen, desde as rainhas do vodu até a era da cera e dos “discos de raça”, quando os direitos autorais ainda estavam no futuro e os royalties eram opcionais.
Em um eco da famosa frase de Chuck D de que o hip-hop era “a CNN dos negros”, o blues registrou uma história alternativa de atos racistas, de pobreza e injustiça, mas também de óbvias insinuações sexuais e bons momentos.
Depois da Grande Depressão, o blues mudou e avançou para o Norte dos Estados Unidos, mas, na década de 1920 e antes disso, as blueswomen como Smith eram festeiras do Sul do país, vestidas com capricho.
A teatralidade das trupes em turnê era movida por um senso de ocasião e por bebida ilícita. Embora Smith tivesse sucesso suficiente para possuir seu próprio vagão de trem, sua pele mais escura lhe custou o lugar em mais de um show. E a Black Swan, primeira gravadora de propriedade de um negro, achou-a pouco refinada.
A eloquente e emotiva biografia da cantora, lançada em 1997, ganha uma oportuna reedição
Se as canções de Bessie contaram à jovem Jackie Kay uma “história secreta” sobre o sofrimento feminino, a história ainda menos pública era a das relações entre pessoas do mesmo sexo. O relato de Jackie também conta uma história queer, de artistas femininas sexualmente vorazes e altamente solventes, como Bessie e Ma Rainey (1886-1939), retratada em um filme biográfico recente, e dos buffet flats, nos quais festas selvagens e licenciosas davam aos participantes total liberdade para serem eles mesmos.
As contradições abundam num livro em que a verdade emocional joga contra o fato histórico, e Jackie Kay imagina como as coisas poderiam ter sido. Embora o material de Bessie Smith abranja uma grande diversidade de temas, a maioria das canções associadas a essa célebre figura queer é sobre amar homens, aponta a autora.
Bessie era orgulhosa e intimidada, generosa e imprudente, uma bêbada violenta que foi brutalizada por um marido abusivo que ela parecia não conseguir deixar. Ela teve um longo relacionamento com uma confidente próxima, com quem talvez nunca tenha feito sexo.
O texto está cheio de perguntas. Há também passagens nas quais a biógrafa imagina os pensamentos mais íntimos da cantora de blues, ou assume um olhar poético, imaginando o que nunca foi – não poderia ter sido – registrado.
Neste momento histórico em que se trava uma guerra entre fato e conjectura, a opção de Jackie significa caminhar em uma corda bamba delicada. Mas seu propósito, em 1997, era filtrar verdades emocionais íntimas do registro histórico mais seco, um processo conhecido na criação de qualquer filme biográfico ou alegoria ficcional de um astro do rock.
Às vezes, essas passagens em itálico soam um pouco desajeitadas, principalmente quando Jackie tenta escrever no vernáculo dos negros sulinos. Outras são emocionantes.
Em uma delas, quase no meio desse livro semelhante à máquina do tempo Tardis (do seriado Dr. Who), ela imagina o conteúdo de um baú real – o Santo Graal da biógrafa –, no qual a cantora guardava seus bens mais preciosos.
Jakie enumera seu conteúdo: letras inéditas, “plumas de avestruz” e uma mecha de cabelo da sobrinha e assessora Ruby Walker. Mas, entre as cartas e trajes antigos, a autora coloca “uma panela gigante de ensopado de galinha, ainda fumegante, com a tampa inclinada para o lado”, “uma jarra de ar noturno do Harlem” e o Rio Tennessee, com partituras de blues “transformadas em pequenos barcos”.
O lirismo faz uma sanfona de tempo e espaço, levando o redemoinho de artefatos – evidências concretas e monumentos ao sentimento – a subir em um crescendo inebriante. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A reinvenção de Bessie Smith”
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