


Opinião
Sob nova direção
O ‘Velho Cap’ testa um novo figurino, mas produz as mesmas crises de sempre


Em sua coluna no New York Times, Paul Krugman cuidou do mais recente desastre financeiro promovido pela inventividade da turma dos mercados. A última trombada da finança ocorreu no território das criptomoedas. Um ano atrás, escreveu Krugman, “o Bitcoin e outras criptomoedas estavam sendo vendidos a preços recordes, com um valor de mercado combinado de cerca de 3 trilhões de dólares; anúncios brilhantes com celebridades – o mais infamante, o ‘Fortune Favors the Brave’ de Matt Damon – encheram as mídias. Políticos, incluindo, infelizmente, o prefeito de Nova York, correram para se alinhar com o que parecia ser a coisa do futuro. Céticos foram informados que, simplesmente, não entenderam coisa alguma. Desde então, os preços dos ativos cripto despencaram, enquanto um número crescente de instituições entrou em colapso em meio a alegações de escândalo. A implosão da FTX, que parece ter usado o dinheiro dos depositantes na tentativa de sustentar uma empresa relacionada, fez a maioria das manchetes, mas é apenas uma desgraça em uma lista que não para de crescer”.
Os mercados financeiros globais acenderam o sinal de alerta ao se depararem com o espectro de uma nova crise que ronda o espaço-mundo da finança capitalista. Nas principais praças financeiras do mundo, a memória da grande crise financeira de 2008 ainda cutuca os neurônios da turma que se aboleta nas mesas de operação para formar “posições vendidas ou compradas”. Convém, neste momento, analisar as condições que norteiam a avaliação da riqueza capitalista diante das inquietações dos mercados.
O combustível dispara pela guerra na Ucrânia. As criptomoedas derretem – Imagem: Megan Briggs/Getty Images/AFP
O risco da deflação generalizado de ativos é crescente, assim como as expectativas de recessão global. Este cenário de radical incerteza é inflamado pela incapacidade de as economias conterem o processo inflacionário que assola, praticamente, todos os países impactados pela desorganização das condições de oferta global durante o período pandêmico.
O contexto da guerra russo-ucraniana impõe ao espaço europeu uma situação de desorganização econômica que não se assistia desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com a constituição de mercados paralelos de fontes energéticas. A consistente valorização do dólar em relação às demais moedas, decorrente dos aumentos sucessivos da taxa de juros norte-americana, pressiona as economias do resto do mundo a operarem ajustes recessivos para conter os desequilíbrios entre os saldos comerciais e a fuga de capitais rumo aos títulos públicos dos EUA.
A ideologia dominante que impera nas mentes dos comandantes dos tesouros nacionais e Bancos Centrais, diante do dilema entre estancar o processo inflacionário e desatar a recessão, desconsidera completamente as perturbações que as medidas convencionais de política econômica podem causar nas condições de avaliação da riqueza capitalista.
A interdição ideológica neoliberal que assola os governos e as instituições internacionais – escoltados pela mídia – tem encontrado uma rota única para a solução das instabilidades globais, aquelas que rastejam na superfície e as que se movem nos subterrâneos das estruturas do “Velho Cap”. Vamos lá: preconizam o aumento alinhado das taxas de juro pelos Bancos Centrais, conciliado ao novo ciclo de asfixia sobre os gastos públicos, maiores flexibilizações nas relações de comércio e do trabalho e a privatização do que resta das empresas públicas.
Os dilemas que envolvem a política econômica dos países capitalistas refletem a insuficiência de instrumentos à disposição dos governos para lidar com as crises do capitalismo em suas múltiplas formas de expressão. Os instrumentos convencionais de política econômica fundamentam suas hipóteses no poder de autorregulação dos mercados, premissa que acomoda os interesses dos mercados financeiros empenhados em exercer seu poder de ditar os rumos das políticas econômicas. A plutocracia supranacional promove, nas décadas neoliberais, a sujeição dos Estados nacionais à tirania da finança globalizada.
Os fantasmas de John M. Keynes e do velho Karl Marx assombram os profetas neoliberais que se debatem, uma vez mais, com a tal da moeda, fenômeno crucial das economias capitalistas, não por acaso expurgado das teorias tradicionais. A dimensão monetária move, simultaneamente, a acumulação, o progresso técnico e, em contrapartida, deforma as dimensões humanas das relações sociais, substituindo-as pelo despotismo da concorrência desenfreada entre os indivíduos, ansiosos por demarcar suas identidades pela acumulação monetária ou do consumismo desmedido.
A PLUTOCRACIA SUPRANACIONAL PROMOVE A SUJEIÇÃO DOS ESTADOS À TIRANIA DA FINANÇA GLOBALIZADA
O desarranjo socioeconômico intensifica-se na medida em que a dinâmica da acumulação monetária empreende a concentração da riqueza e da renda social. Esse fenômeno desvela o “modo de ser” do capitalismo, cuja dinâmica reprodutiva supõe a subordinação das formas privadas da riqueza à forma geral, inexoravelmente monetária. É a existência do dinheiro que cria e determina as relações de produção, exploração do trabalho, de troca e consumo. Por isso mesmo, para que o circuito de formação da renda social se efetive, em primeiro lugar, as decisões de investimento que põem em marcha o exército de trabalhadores depende, necessariamente, da avaliação sobre o destino do estoque de riqueza capitalista.
O processo avaliativo da riqueza capitalista depende, por seu turno, da percepção dos detentores da riqueza a respeito das condições de liquidez dos ativos e das dívidas privadas que carregam determinada expectativa de valorização. A formação dos ativos depende da contratação de dívidas para fundar tanto as posições de investimento em máquinas, equipamentos e mais trabalhadores quanto a aquisição de títulos de propriedade que constituem a forma par excellence da riqueza privada (ações, títulos de dívida, derivativos etc.). As expectativas acerca da valorização desses ativos são postas diante da incerteza quanto à transformação das formas privadas da riqueza na forma universal, isto é, em dinheiro.
O conflito bélico vai atravessar o ano. Marx pontuava: “O crédito público é a religião do capital” – Imagem: Aris Messinis/AFP e AFP
Desse modo, tanto a autorrealização das expectativas de valorização da riqueza quanto sua depreciação acelerada refletem a ansiedade dos agentes privados em validar socialmente sua riqueza ao conduzi-la ao encontro da forma monetária. Ocorre que, se o capitalismo é movido pelo amor ao dinheiro, como fenômeno que modula as ações humanas no capitalismo, a incerteza do trânsito entre as formas privadas da riqueza para a forma monetária oferece o prêmio de liquidez como amante. Isso explica a paixão do capital em se desquitar dos títulos privados para se acasalar à dívida pública, a concubina inseparável do dinheiro, a liquidez par excellence.
No capítulo 24 d’O Capital, Marx é categórico ao afirmar que “o crédito público é a religião do capital”, pois o papel financeiro do Estado garante a constituição do processo de endividamento privado, portanto, do trânsito entre a forma geral da riqueza para as formas particulares e o retorno das formas particulares para a forma geral. Nas palavras de Marx, no parágrafo seguinte: “A dívida pública dota o dinheiro da capacidade criadora (de riqueza)”, permitindo que o crédito monetário adiantado para o circuito produtivo presida as condições de exploração do trabalho e geração de valor.
O sistema bancário desempenha papel fundamental nesse processo, pois é responsável pela avaliação do “grau de liquidez” dos ativos privados. Essa avaliação acaba por se refletir na composição da taxa de juros corrente que serve de parâmetro tanto para a avaliação de viabilidade dos investimentos quanto do valor presente da riqueza patrimonial.
OS PROCESSOS INFLACIONÁRIOS, MOTIVADOS PELA DESORGANIZAÇÃO DA OFERTA GLOBAL, NÃO PODEM SER COMBATIDOS PELO REMÉDIO DA POLÍTICA MONETÁRIA
Há que se destacar: a aceleração do processo de acumulação “financeirizada” do mesmo modo em que empreende a tendência estrutural de redundância do trabalho, ao elevar o exército de trabalhadores desempregados, também excita a dependência contraditória entre a valorização da riqueza mobiliária privada e o endividamento público.
O Estado não sucumbiu indefeso à avalanche neoliberal, mas moldou sua própria forma de atuação em resposta à necessidade de sua atuação histórica como “financiador”, em primeira instância, do processo de acumulação de capital e “garantidor, em última instância, da estrutura patrimonial detida pelos proprietários privados da riqueza social.
As perturbações recentes nos mercados financeiros refletem, precisamente, o temor sobre a capacidade de liquidação do estoque de riqueza patrimonial que preserva em sua composição um volume extraordinário vindo diretamente do crescimento do balanço dos Bancos Centrais, desde a grande crise de 2008, por meio das sucessivas rodadas de “relaxamento monetário” representadas pelas iniciativas de Quantitative Easing (QE).
Quanto maior a liquidez “doada” pelos Bancos Centrais ao setor financeiro privado, mais elevadas as expectativas de valorização da riqueza administrada sob tais condições favoráveis de liquidação. O crescimento das expectativas de valorização desses estoques de riqueza pós-2008, temperado pelo impulso tecnológico da quarta revolução industrial, revelou com nitidez acachapante o percurso de desenvolvimento recente do intelecto-genérico, a força que submete as novas formas do trabalho ao regime da finança globalizada pela dimensão comunicativa-informacional. Nessa dimensão, o “Velho Cap” revigora o véu monetário que encapa as relações mercantis, ocultando, quase completamente, o corpo social exposto ao “inferno da miséria urbana e da precarização”, como pontuou Franco Bifo Berardi.
Ainda que facilitadas as condições de liquidez, a fração dessa liquidez escoada para o setor produtivo destinou-se, sobretudo, às iniciativas de superaceleração do progresso técnico, ao desenvolvimento da dimensão comunicativa-informacional do capital. A geração de empregos respondeu, com raras exceções, à expansão da massa de trabalho precário, resultado do impulso à substituição de postos de trabalho tradicionais pelos adventos da robótica avançada, da inteligência artificial, das biotecnologias e da automação e digitalização acelerada dos trabalhos manuais.
O exército de trabalhadores precários continua a crescer, resultado da interdição ideológica neoliberal – Imagem: Renato Luiz Ferreira
O resultado desse processo foi a semiestagnação das taxas de crescimento das economias, enquanto a acumulação financeira de riqueza prosseguiu acelerada e centrada nos mecanismos de especulação e arbitragem financeira, oportunidades oferecidas pelo “capital barato” ofertado pelos Bancos Centrais.
Os processos inflacionários, motivados pela desorganização da oferta global, não podem ser combatidos pelo remédio da política monetária. O único efeito da elevação recente das taxas de juro sobre a inflação é causado pela depressão da renda social. Os impactos da avaliação incorreta sobre as origens da inflação pelos Policy Makers refletem-se no oferecimento de um remédio que alivia as agonias da doença, enquanto acelera as comorbidades patogênicas do “Velho Cap”.
O aumento da incerteza sobre a capacidade de liquidação dos ativos privados impõe, simultaneamente, o crescimento da taxa de juros correntemente praticada nas operações privadas de crédito e a deterioração das condições de refinanciamento dos estoques privados de dívida. Esses dois fatores aceleram a fuga desesperada para liquidação dos ativos, pressionando tanto os estoques de dívida quanto a riqueza mantida na forma de ativos privados à demanda crescente por moeda. Cabe ao Estado servir ao aumento da demanda por moeda, na dupla cruzada de expansão dos gastos e do endividamento público.
As iniciativas dos Bancos Centrais em elevar as taxas básicas de juro e prometer a redução de seus passivos agem na contramão dos interesses coletivos de manutenção do nível de emprego e da renda social, servindo aos interesses particulares daqueles que se antecipam à crise operando “vendidos” em relação ao pânico dos mercados. Por consequência, a realocação da riqueza capitalista em direção aos títulos públicos autorrealiza a profecia de deflação dos ativos e das dívidas privadas anunciada pela elevação da taxa de juros dos títulos públicos.
Sob o comando do “Velho Cap”, a direção tomada pelos Bancos Centrais, ao sancionar a direção da “fuga generalizada para liquidez” e incendiar a realocação da riqueza privada sob condições de liquidação desfavoráveis, conduz à concentração da riqueza e ao domínio dos interesses privados sobre as funções públicas, sociais e monetárias do Estado. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sob nova direção”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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