

Opinião
Estado de espírito
O Brasil, entre uma memória inquietante e uma antecipação auspiciosa


Verdadeiramente nunca vivemos no futuro (nem no passado). Por outro lado, o que chamamos presente é apenas o momento de interface entre a memória reconfortante ou inquietante do que fomos e a antecipação, auspiciosa ou sinistra, do que vamos ser. Os finais de ano prestam-se a que esse momento, sempre presente, se manifeste sob a forma de interpelação. Nisso consistem os balanços e os planos. A enigmática dinâmica temporal centrada no que já não vivemos e no que nunca viveremos ocorre tanto no nível individual quanto no nível social. Centro-me no social, mas a análise é válida, com adaptações, em todos os níveis da vida humana.
A memória e a antecipação não são coisas distintas. São modos diferentes de avaliar a condição existencial em razão do medo e da esperança que ela suscita. A memória inquietante e uma antecipação sinistra são o espelho do medo sem esperança, a memória reconfortante e a antecipação auspiciosa são o espelho da esperança sem medo, a memória reconfortante e a antecipação sinistra são o espelho da perda e dos limites impostos por determinações, imposições ou fatalidade, a memória inquietante e a antecipação auspiciosa são o espelho da resistência e das possibilidades, da desestabilização dos limites, das imposições e dos determinismos. No nível individual, este é o tempo em que cada indivíduo, grupo social ou sociedade tenta definir a sua condição existencial. É à luz dela que se afirmam propósitos e se tomam decisões. Nos tempos de globalização fraturada e fraturante em que vivemos, outro nível de avaliação condiciona todos os níveis anteriores. Refiro-me à escala do mundo e do planeta. Qual é a condição existencial do Brasil neste fim de 2022?
Eu ousaria pensar que a condição existencial da maioria do povo brasileiro é determinada por uma memória inquietante e uma antecipação auspiciosa, pois consiste num equilíbrio instável entre o medo e a esperança. Os anos pós-Dilma Rousseff foram de desastre social, destruição ambiental, polarização ideológica para além dos limites democráticos, empobrecimento coletivo, perda de soberania, instrumentalização religiosa, terrorismo estatal, policial e midiático, subversão institucional (Justiça e Forças Armadas). O resultado foi o colapso quase total da democracia já de si de baixa intensidade. O medo instalou-se nos corpos, nos mínimos de sobrevivência e na manifestação de opiniões. Chegou a assumir o paroxismo do pânico paralisante, da fuga em vez da resistência.
O alívio chegou perto do fim do ano e sob a forma do resgate in extremis. Da atuação dos tribunais superiores à eleição de Lula tudo foi in extremis. Que tipo de antecipação pode resultar daqui? Que propósitos? Que decisões? Ouso pensar que, no caso do Brasil, a antecipação é tanto mais auspiciosa quanto é consabidamente frágil. As equipes de transição que preparam o programa do novo governo mostram isso mesmo pela sua enorme heterogeneidade. Alguns dos seus integrantes poderiam estar em qualquer outra transição, e até em transições de sinal contrário. Se alguns maximizam as possibilidades, outros vincam os limites, se uns veem em Lula uma renovada subjetividade política constituinte, mandatada pelos que nele votaram, outros o consideram como uma subjetividade política constituída pelas alianças a que tem de recorrer para poder governar. Dá a impressão de que uma praga de amnésia (ao estilo da cegueira do romance de Saramago) invadiu as reuniões, os acordos, as notícias e as consciências. De repente, o golpe institucional em curso desde 2016, a perseguição política mais grosseira e o impeachment mais escandaloso da história política contemporânea nunca existiram. O problema é que, quando está tudo em branco, é tão fácil escrever como apenas sujar.
Em face disto, seria de aconselhar, neste momento decisivo, que o Brasil político aprendesse com os povos indígenas o modo de olhar o futuro. Eles sempre olham o futuro virados para o passado. Se o Brasil assim fizesse, quatro ideias mestras se imporiam para orientar as propostas políticas: punir ou neutralizar os golpistas, reformar profundamente o sistema judiciário, distinguir bem entre os amigos de agora e os amigos de sempre e privilegiar sempre esses últimos, controlar o tempo político.
QUATRO MEDIDAS ESSENCIAIS: PUNIR OS GOLPISTAS, REFORMAR A JUSTIÇA, DISTINGUIR OS AMIGOS DE SEMPRE DAQUELES DE OCASIÃO E CONTROLAR O TEMPO POLÍTICO
Punir os golpistas. O País esteve à beira do colapso democrático e a vitória eleitoral de Lula não neutralizou os golpistas, apenas os obrigou a falar mais baixo e a mudar de tática. Com eles à solta não haverá governabilidade possível. É imperativo nomear para procurador-geral da República alguém de inegável prestígio intelectual, muito preparado, com forte e sólida formação humanista, com visão garantista do processo penal e com sólida consciência democrática. Alguém que, quando os golpistas governavam, teve a coragem de criticar a Operação Lava Jato e a subsequente e escandalosa inércia do procurador-geral desses últimos anos. Por outro lado, não se imagina que uma figura tão sinistra e caricata como Olavo de Carvalho, mas muito mais perigosa que ele, se mantenha à frente de qualquer serviço público sem responder pelos danos causados e ilegalidades praticadas. Refiro-me ao general Augusto Heleno.
Reformar o sistema judiciário. Visto da perspectiva da defesa da democracia e da justiça social, o sistema judiciário foi globalmente, nos últimos anos, um protagonista ou um acelerador do desastre. Pesem embora a atuação corajosa in extremis de alguns magistrados e o ativismo não menos corajoso das magistradas que levaram a cabo o Fórum Social Mundial Justiça e Democracia, o sistema judiciário, se não for profundamente reformado, será no período que agora se inicia parte do problema do Brasil e não parte da solução. Por agora, há golpismo à solta no interior do sistema.
Privilegiar os amigos de sempre. Os amigos de sempre são os deserdados das elites patrimonialistas que governam o Brasil. Os amigos de agora são, por exemplo, os EUA, que colaboraram ativamente para destruir a economia, a democracia e a soberania do Brasil via Lava Jato e não só, e que agora, por meras razões de política interna, se assumem como sinceros aliados de Lula da Silva.
Controlar o tempo político. O presidente Lula tem credibilidade para nos primeiros meses limpar o Brasil do lixo autoritário que se acumulou. Se esperar muito para o varrer, corre o risco de ser varrido por ele. Neste momento, esquecer o passado é arriscar deixar escapar o futuro. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Estado de espírito”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.