Economia
Âncora fiscal
“A desigualdade é o principal fator que impede o Brasil de crescer de forma sustentável”, avalia Tereza Campello


Encarregado de analisar as contas do Ministério da Cidadania, o Grupo de Trabalho de Desenvolvimento Social e Combate à Fome da equipe de transição de Lula identificou um cenário desalentador. Não havia recursos suficientes para pagar o Bolsa Família de 600 reais e a verba disponível para o Vale-Gás, cortesia eleitoral de Bolsonaro, acabaria no primeiro semestre. Na área de serviços socioassistenciais, a verba despencou 96%, comprometendo o atendimento nos Centros de Referência em Assistência Social (Cras), em abrigos de crianças e idosos e em centros de acolhimento para mulheres vítimas de violência, entre outros equipamentos essenciais.
Não fosse a liberação de despesas sociais acima do teto, o colapso da rede de proteção social seria iminente, avalia a ex-ministra Tereza Campello, integrante do comitê. Na entrevista a seguir, ela apresenta um diagnóstico da situação deixada pela equipe de Bolsonaro, explica como pretende superar a chaga da fome, a fustigar 33 milhões de brasileiros, e aponta fatores que nunca entram nas contas dos propagandistas da austeridade fiscal.
“Os fiscalistas pensam no curtíssimo prazo. Qual foi o custo de não ter oferecido vacina contra a Covid a tempo? Quantas vidas foram perdidas?”, provoca. “E desnutrição infantil? Além das consequências biológicas, dos impactos na rede hospitalar, incontáveis estudos provam que uma criança mal alimentada tem graves prejuízos na aprendizagem, algo que pode comprometer todo o seu futuro. Alguém do mercado precificou isso?”
“Alguém precificou o custo de deixar 33 milhões de brasileiros passando fome?” – Imagem: Jhony Pinho/Agif/AFP
CartaCapital: Recentemente, a senadora Simone Tebet afirmou que os recursos do Ministério da Cidadania estavam reservados quase exclusivamente para o Auxílio Brasil e o Vale-Gás. Todos os demais programas estavam abandonados, na penúria. É isso mesmo? Qual é a dimensão do estrago causado pelo governo Bolsonaro?
Tereza Campello: Na verdade, a senadora foi um pouco otimista nessa avaliação. Com o valor reservado no Orçamento, só daria para pagar o Vale-Gás até meados de 2023. No caso do Auxílio Brasil, seria possível oferecer apenas um benefício de 405 reais, e não de 600 reais, valor prometido pelos dois candidatos que disputaram o segundo turno. Na área de serviços socioassistenciais, a situação é de calamidade, a verba despencou 96%. Nos 5.570 municípios brasileiros, há um conjunto de equipamentos mantidos com recursos do governo federal, em regime de copartipação. São abrigos de criança e idosos, unidades que acolhem jovens em conflito com a lei, mulheres vítimas de violência, programas de erradicação do trabalho infantil e escravo. Na minha gestão, esse conjunto de serviços era da ordem de 8 bilhões de reais, em valores corrigidos pela inflação. O mínimo para manter o atendimento, em condições precárias, com filas, é 2,5 bilhões. Sabe quanto eles reservaram? Apenas 49 milhões de reais.
CC: Se o mínimo necessário para essas unidades abrirem as portas é de 2,5 bilhões de reais, o que daria para fazer com 49 milhões?
TC: Esse valor daria para manter esses serviços por uma semana. Na verdade, há tempos o governo federal não cumpre suas responsabilidades. Se essas unidades ainda estão abertas, é porque as prefeituras ou os governos estaduais bancam com recursos próprios. E a tragédia não para por aqui. O programa de cisternas, por exemplo, que a gente chegou a gastar 1 bilhão de reais por ano, tem 2,6 milhões de reais previstos. É um valor irrisório, só para não fechar a dotação orçamentária.
“OS PAGAMENTOS INDEVIDOS DE AUXÍLIO GERARAM UM PREJUÍZO DE 6,6 BILHÕES DE REAIS”
CC: Para justificar a gastança no período eleitoral, Bolsonaro disse que não iria “deixar o tanque cheio” para o próximo governo.
TC: Na verdade, eles estão entregando o carro com o tanque vazio, a centenas de quilômetros de qualquer posto de gasolina, e com os quatro pneus furados. De forma proposital. Só que o prejuízo não será arcado só pelo governo. Quem vai sofrer é a população mais pobre e vulnerável.
CC: Ao lançar o Auxílio Emergencial na pandemia, a atual gestão parece ter abandonado o Cadastro Único. Os beneficiários passaram a se inscrever por aplicativo, sem a triagem de assistentes sociais. O TCU apontou, porém, pagamentos indevidos a 3,5 milhões de famílias incluídas em agosto, no início da campanha eleitoral, um prejuízo bilionário aos cofres públicos.
TC: Sim, é verdade. Houve muita fraude. Mais de 79 mil militares receberam benefícios indevidamente. É um número altíssimo, se levarmos em conta que as Forças Armadas têm cerca de 360 mil homens na ativa. Estranha-me o fato de a mídia não ter se interessado em investigar esse caso a fundo. Teve muita gente que nunca foi pobre e recebeu auxílio, entre eles aquele empresário que insultou Gilberto Gil no Catar. Teremos trabalho para identificar os aproveitadores e recuperar o dinheiro. É preciso, porém, separar o joio do trigo. Tenho motivos para acreditar que milhões de brasileiros pobres foram induzidos ao erro pelo próprio governo.
CC: Como assim?
TC: Houve uma inexplicável multiplicação das famílias unipessoais, compostas de uma só pessoa, nos últimos meses. O solitário indivíduo em situação de rua também tinha direito ao Bolsa Família, mas o cálculo do benefício era per capita. No nosso programa, não fazia diferença se você vivia sozinho ou com mais pessoas, o valor pago por beneficiário era o mesmo. O governo Bolsonaro destruiu essa lógica de equidade. O Auxílio Brasil tem um valor fixo por família, não importa o número de integrantes dela, e muitos brasileiros, por estratégia de sobrevivência, declararam viver sozinhos para que o cônjuge também pudesse receber. Como não houve campanha de esclarecimento, não podemos acusá-los de fraude. Além disso, o cadastro no aplicativo foi mal concebido, deixou muita gente em dúvida e não havia a quem recorrer para buscar informações corretas.
O ônus de excluir milhões de beneficiários incluídos indevidamente no Auxílio Brasil ficará para o governo Lula – Imagem: Felipe Barros/Prefeitura de Itapevi
CC: Até porque a triagem do assistente social deixou de existir. O beneficiário passou a ser responsável pelo próprio cadastro no aplicativo.
TC: Exatamente, e qual foi o resultado? Em 2018, antes de Bolsonaro assumir, havia 1,8 milhão de famílias unipessoais, com um único integrante, no cadastro do Bolsa Família. Esse número saltou para 5,5 milhões em julho de 2022, um aumento de 197%. O mais espantoso é o Ministério da Cidadania não ter notado a diferença. Ainda assim, insisto: não acredito que essas pessoas agiram de má-fé. Ocorreram oito mudanças profundas nos programas de transferência de renda nos últimos quatro anos. Regras diferentes, valores distintos. O povo ficou desnorteado.
CC: Qual foi o impacto disso nos cofres públicos?
TC: Pelos cálculos dos técnicos da equipe de transição, em torno de 6,6 bilhões de reais. Levará tempo para corrigir essas distorções no Cadastro Único. Passada a eleição, eles sorrateiramente publicaram uma instrução normativa para fazer a revisão cadastral de 3,2 milhões de beneficiários, mas jogou a bucha para o próximo governo. O ônus de retirar do cadastro aqueles que estão recebendo auxílio indevidamente recairá sobre as nossas costas.
“OS FISCALISTAS IGNORAM O FATO DE QUE, AO AQUECER A DEMANDA, O ESTADO ARRECADA MAIS POR MEIO DE TRIBUTOS. SÓ ENXERGAM A PONTA DAS DESPESAS, NUNCA DA ARRECADAÇÃO”
CC: Em 2014, quando o Brasil saiu do Mapa da Fome, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) destacou a importância do Bolsa Família, mas deixou claro que o êxito era decorrente de um conjunto de políticas públicas, como a valorização do salário mínimo, o Programa de Aquisição de Alimentos e o reforço das merendas escolares. Mas o chamado mercado parece só aceitar o Bolsa Família fora do teto de gastos, como se ele fosse suficiente para resolver a questão.
TC: A reestruturação do mercado de trabalho formal, por sinal, foi o que mais contribuiu para a superação da insegurança alimentar no Brasil, mais que o Bolsa Família. Sempre me perguntam sobre as novidades nos programas sociais, mas o maior desafio será recuperar aquilo que foi destruído por Bolsonaro. Ele nem sequer reconhecia a gravidade da fome, dizia que 33 milhões de famintos era um número superestimado, que não via ninguém pedindo comida na porta da padaria, mas também não apresentava qualquer estudo para rebater o dado. Eu espero que, após desocupar o Palácio da Alvorada, ele volte a frequentar padarias, porque sou sempre abordada por pessoas pedindo um pãozinho, um litro de leite. O primeiro passo para superar um problema é reconhecer que ele existe. O compromisso de Lula é vencer a fome no tempo mais curto possível.
CC: Como fazer isso?
TC: Não tem mistério, é retomar o trabalho que vínhamos fazendo. Não são só os 600 reais do Bolsa Família, é reforçar a merenda escolar, retomar os incentivos à agricultura familiar, criar estímulos para o agronegócio produzir alimentos, e não somente commodities para exportação. A FAO sempre destacou um ponto: o problema do Brasil nunca foi a escassez de alimentos, e sim a falta de renda para comprá-los. Se você me perguntasse qual foi o principal motivo para a volta da fome, eu diria que foi a desestruturação do mercado de trabalho, sobretudo após a reforma do Temer, que empurrou milhões de brasileiros para a informalidade e os empregos precários. Hoje, a grande maioria trabalha mais e ganha menos. É lógico que a pandemia agravou o cenário, mas a pobreza e a fome vinham crescendo antes de o Coronavírus chegar aqui. Bolsonaro só reforçou esse processo.
A reestruturação do mercado de trabalho contribuiu para tirar o País do Mapa da Fome e para estimular a economia – Imagem: GOVSP
CC: Guedes furou o teto de gastos em quase 800 bilhões de reais nos últimos quatro anos, mas não víamos o “mercado” espernear tanto como agora, em meio aos esforços de Lula para viabilizar os programas sociais. Consigo entender os motivos que levam banqueiros e investidores a defender esse fiscalismo draconiano, mas os empresários escapam à minha compreensão. Não percebem que o empobrecimento do povo destrói o mercado doméstico?
TC: É cansativo pregar no deserto, repetir sempre o mesmo discurso: “Para cada real investido no Bolsa Família, retorna 1,8 real no PIB. Outros benefícios assistenciais, como o BPC, geram o mesmo efeito multiplicador. O desenvolvimento social é o motor da economia, estimula o mercado interno”. Não adianta falar, os fiscalistas nunca incluem isso na conta, e também ignoram o fato de que, ao aquecer a demanda por produtos e serviços, o Estado arrecada mais por meio de tributos. Não adianta olhar só para a ponta dos gastos, é preciso olhar para a arrecadação. Alguns podem argumentar que esse estímulo à demanda interna tem fôlego curto, mas são os fiscalistas que pensam no curtíssimo prazo. Qual foi o custo de não ter oferecido vacina contra a Covid a tempo? Quantas vidas foram perdidas? E a desnutrição infantil? Além das consequências biológicas, dos impactos na rede hospitalar, incontáveis estudos provam que uma criança mal alimentada tem graves prejuízos na aprendizagem, algo que pode comprometer todo o seu futuro. Alguém do mercado precificou isso? Essa conta a gente só vai pagar daqui dez, 15 anos, quando esse menino entrar no mercado de trabalho. Mas, olhe, eu não gosto de encerrar uma entrevista assim, tão para baixo. Posso acrescentar uma observação?
CC: Fique à vontade.
TC: Lembra-se da Anna Peliano? Ela morreu de câncer no ano passado, era uma socióloga brilhante. Montou o primeiro Mapa da Fome no Brasil, que subsidiou a luta de Herbert de Souza, o Betinho. Foi ainda secretária-executiva do Comunidade Solidária. Bem, ela costumava dizer que as políticas públicas estavam sujeitas a avanços e retrocessos, mas nunca retornavam ao patamar anterior. De fato, quando a gente analisa em uma perspectiva mais ampla, de 40 ou 50 anos, vemos que o Brasil avançou muito em termos sociais. Hoje, ainda estamos atordoados com o estrago causado por Bolsonaro, mas tenho certeza de que seremos capazes de retomar o caminho da inclusão e do desenvolvimento social. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Âncora fiscal”
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