Economia
A serviço de quem?
A economia deve servir ao povo pela retomada dos investimentos públicos, e não se valer do povo para favorecer os rentistas, avalia Darc Costa


Especialista em Planejamento e Infraestrutura e autor de diversos livros, entre eles o clássico Fundamentos para o Estudo da Estratégia Nacional, o engenheiro e economista Darc Costa fala, nesta entrevista a CartaCapital, sobre suas expectativas em relação ao futuro governo. Ele aponta as tarefas que considera fundamentais para que o Brasil volte a ter um projeto estratégico de desenvolvimento nacional, após os quatro anos de abandono promovido pelo governo de Jair Bolsonaro.
Costa avalia que a meta primordial de um novo projeto deve ser reorganizar o modelo de gestão da economia de forma que este “sirva ao povo pela retomada dos investimentos públicos”, e não “se valer do povo para promover a acumulação financeira dos rentistas”. O especialista prega que a reestruturação da economia, por meio do desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação, aliada a uma infraestrutura dotada de manufatura avançada e agricultura científica e de precisão, é condição sine qua non para recolocar o Brasil entre os protagonistas mundiais.
CartaCapital: O governo Bolsonaro desmontou diversos setores sensíveis da administração pública. Quais são as tarefas fundamentais para que o próximo governo recoloque o País de novo nos trilhos?
Darc Costa: A primeira tarefa será reorganizar o modelo de gestão da economia de forma a que sirva ao povo pela retomada dos investimentos públicos. E não, como vem acontecendo nos últimos 30 anos, que se sirva do povo para promover a acumulação financeira dos rentistas. Depois, transformar a educação, inaugurando um novo processo educacional que proporcione uma formação capacitadora e analítica. E implantar no País um modelo que equalize a qualidade do ensino em todo o território nacional e traga para todos os estados e municípios um padrão único de investimento. Por fim, retomar o desenvolvimento e a industrialização a partir de quatro setores-chave: agroindústria, energias renováveis, complexos farmacêutico, biotecnológico e de saúde, e complexo de Defesa.
“O Brasil não precisa se alinhar nem aos EUA nem à China – Imagem: Redes sociais
CC: O que fazer para essa retomada ser imediata?
DC: Será preciso promover uma produção qualificada e baseada na nova economia do conhecimento, entendendo que a riqueza e o desenvolvimento não estão mais na indústria tradicional, e sim em uma moderna estrutura, rica em ciência, tecnologia e inovação, e que constrói uma manufatura avançada, baseada em serviços intelectualmente densos e na agricultura científica e de precisão. Da mesma forma, é preciso reorganizar práticas políticas nas relações de trabalho de forma a resgatar a maioria informal que está precarizada na nossa massa trabalhadora, o que leva ao aviltamento salarial e ao aumento do subemprego.
CC: O chamado “teto de gastos” é um empecilho?
DC: O futuro governo deve praticar uma nova política fiscal e monetária, que chamam de finanças funcionais, para obter autonomia e autossustentação no financiamento do desenvolvimento. Precisa ainda atacar decisivamente os dois problemas sociais mais agudos do País: o alto desemprego e as péssimas condições de vida nas periferias metropolitanas. Isso pode ser conseguido através da implantação de um programa de emprego garantido, de trabalho aplicado financiado pelo Estado e que se deve tornar também o eixo das políticas sociais da Educação, Saúde, Saneamento Básico etc., com programas de qualificação profissional nessas áreas.
CC: É possível falar em “estratégia nacional” neste governo de frente ampla que está se construindo em torno de Lula? Quais são os elos estratégicos que podem unir nos próximos anos as diversas visões políticas que comporão o governo?
DC: Para fazer uma estratégia nacional tem de ter um programa nacional, não é? Então, é necessário que se ordene esse processo de formação de um projeto nacional para o Brasil. Que exista uma vertente interna que analise as questões a serem resolvidas no plano interno em acordo com as tarefas fundamentais que elenquei anteriormente. E também uma inserção externa do Brasil, que deve ser buscada em consenso e em torno dos interesses nacionais. Acho que é possível uma estratégia nacional, desde que se tenha um projeto nacional que seja devidamente discutido. Temos de recuperar a ideia de que o Estado só se legitima se cada cidadão enxergar no projeto nacional o seu próprio projeto. Para isso, é fundamental que ele seja discutido, pactuado e levado ao conhecimento da população.
O DESENVOLVIMENTO NÃO ESTÁ MAIS NA INDÚSTRIA TRADICIONAL, E SIM EM UMA MODERNA ESTRUTURA, RICA EM CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO, QUE CONSTRÓI UMA MANUFATURA AVANÇADA
CC: Para onde apontam as primeiras sinalizações feitas pelo futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e pelo próximo presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, em termos de economia e infraestrutura?
DC: Não tenho total discernimento sobre qual será a postura de Haddad para a gestão da nossa economia. Sei que há uma variante positiva nesse processo, que é o fato de o futuro ministro não estar alinhado com os chamados interesses do mercado. Isso é importante, porque nos últimos 40 anos os interesses do mercado só levaram o Brasil a ficar estacionário.
CC: Qual seria o papel ideal do BNDES dentro de uma estratégia nacional de recuperação?
DC: É bom frisar que o BNDES é uma instituição criada para gerar ativos, e não para transferir ativos do setor público ao setor privado, e vice-versa. Duas tarefas são fundamentais para recuperar os investimentos. O BNDES deve ter papel forte na infraestrutura, como teve na época de sua criação, quando se dedicou ao setor elétrico e ao transporte ferroviário. A instituição também deve se preocupar com itens relativos à reindustrialização do País.
CC: O ex-chanceler Celso Amorim afirma que o Brasil “não pode sair dos braços dos EUA e cair nos braços da China”. O senhor concorda? Como o País deve se mover nos meandros desta nova “Guerra Fria”?
DC: A colocação de Amorim é perfeita. Os interesses nacionais devem ser colocados acima daqueles dos demais países. Para isso, a neutralidade é fundamental na relação de choque hoje existente entre a China e os EUA. Essa neutralidade exige que não fiquemos alinhados aos norte-americanos. O interesse maior do Brasil é a constituição de um bloco na América do Sul, de forma a assumir papel de liderança nas questões mundiais.
CC: Lula deve tentar recuperar o protagonismo perdido no BRICS? O grupo ainda tem valor estratégico para o Brasil?
DC: Claro que sim. O BRICS é uma instituição muito interessante na medida em que cria condições para a alavancagem do multilateralismo, o que nos interessa enquanto nação. O BRICS tem um papel a ser exercido nas relações internacionais, e o Brasil tem a sorte de ser fundador e protagonista do grupo. É preciso avançar na construção dessa aliança. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A serviço de quem?”
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