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Pessimismo na ideia…

Lembro de Gramsci, ao refletir sobre os próximos quatro anos

Pessimismo na ideia…
Pessimismo na ideia…
Otimista na ação, defendia o pensador italiano - Imagem: AFP
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Bom, veja você, este não é um texto simples de ser escrito. Antes de começá-lo, vale contar uma pequena anedota: minha editora, Ana Paula Sousa, me pediu um texto sobre as expectativas para o governo federal que teremos pelos próximos quatro anos no Brasil (salvo cenários muito atípicos). Ao receber seu pedido, eu respondi: “Mas, Ana… minhas expectativas estão tão baixas, vale mesmo um texto?”, ao que ela rapidamente respondeu: “Talvez valha falar disso exatamente”.

De primeira, o que me ocorreu ao pensar sobre “expectativas” e “governo Lula-Alckmin” foi citar um amigo, também comunicador social que desenvolve importante trabalho de divulgação científica nas áreas de filosofia e semiótica, Senhorita Bira. Em um tuíte recente, brincou: “As únicas duas coisas que espero do governo Lula são leite a 3 reais e Bolsonaro preso. Ele, a mulher dele, os filhos dele, quem um dia tocou na mão dele, se bobear até a Luciana Gimenez”. Mas, como o pedido é por um texto de 6 mil toques e o excerto acima foi dito brilhantemente por este colega de campo político e de trabalho, vamos a algumas ideias.

Para começar, é preciso fazer uma distinção entre desejo/fantasia e expectativa. Os primeiros são aqueles que nos movem, que nos fazem projetar, imaginar e construir a realidade, e a mim eles são excepcionalmente caros. A segunda é uma forma mais pragmática e menos encantada de olhar para a conjuntura e analisá-la. Quando desejo e pragmatismo se contrapõem como num divórcio, não há mais campo para a disputa política. Vencem os tecnocratas e “governar” vira sinônimo de “administrar”, em sentido bem específico e restrito, algo como “manter a coisa em ordem”.


RITA VON HUNTY. Professor, youtuber, palestrante e colunista de CartaCapital.

Bem, e logo de cara, há quatro autores/ideias que eu gostaria que ficassem como pano de fundo deste texto. (I) Antonio Gramsci e sua formulação sobre a concepção socialista do processo revolucionário ser dependente do otimismo da vontade e do pessimismo da razão, em consonância. (II) Felix Guattari e sua urgência em pensar que outra economia é sempre possível, bem como outra filosofia, e que a questão do que é “possível” é justamente a questão mais urgente de qualquer debate. (III) Louis Althusser e sua importante contribuição para o debate sobre ideologia no marxismo. Para o francês, a tarefa da ideologia socialista é garantir que o indivíduo, embora ciente da desimportância de suas ações autônomas, se conscientize da possibilidade de agir de forma transformadora na sociedade. (IV) Por fim, mas igualmente importante, lembremos da formulação de Theodor Adorno ao indagar se seria possível escrever poesia depois de ­Auschwitz ou se a experiência da barbárie deveria reconfigurar a ideia de civilização, e, portanto, alterar radicalmente a forma de fazer poesia.

Acredito ser importante começar assim, para que possamos olhar, com sinceridade, para o cenário desenhado diante de nós. Ao longo de 2022, em uma série de colunas para CartaCapital, busquei dar contorno às limitações que a antiga política de alianças gerida pelo PT em um contexto tão desalentador quanto este que enfrentaremos. Não acredito que nada além do mínimo será possível, pragmaticamente falando, mas acredito que os próximos quatro anos serão decisivos para a história democrática do Brasil. Serão anos em que deveremos lutar pela contínua politização e organização da nossa classe, para que os anos vindouros possam ser de avanço e não de mais retrocesso. O governo de transição tem apontado e descoberto a profundidade do buraco no qual o País foi afundado durante os últimos seis anos de gestão marcadas por políticas de desmonte e destruição do Estado. Estamos falando de pontos como uma dívida de 5 bilhões de reais com os órgãos internacionais, entre eles ONU, OMC e OIT. Contratos absurdos no valor de 172 milhões de reais em bebedouros e guindastes para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Um orçamento de 500 mil reais para a prevenção de desastres naturais. O grupo de trabalho de Minas e Energia estima um impacto de 500 bilhões de reais a ser herdado pela chapa Lula-Alckmin, no que diz respeito à energia elétrica. Isso porque ainda não começamos a falar sobre a defasagem das bolsas de pesquisa, o desmonte da ciência, o sucateamento das verbas para educação e a questão mais urgente de todas: a devastação ambiental e o descaso mortal com os povos originários.

OUTRA REALIDADE É POSSÍVEL E UMA DAS NOSSAS TAREFAS É MOBILIZAR O DESEJO, A CONSCIÊNCIA E O TRABALHO DE CLASSE EM UM SENTIDO, O DA SUA EMANCIPAÇÃO

Acho que se soma às descobertas do grupo de trabalho o pesadelo que Brasília tem vivido desde a diplomação de Lula e Alckmin como os 39ºs presidente e vice-presidente da República. Um grupo terrorista organizado, com o já conhecido “uniforme verde-amarelo”, causou tumulto, medo e instabilidade em setores da cidade ao incendiar veículos e ônibus, espalhar botijões de gás próximo a focos de incêndio e postos de gasolina, tentar invadir a sede da Polícia Federal e se aproximar do hotel no qual Lula estava hospedado. Tudo isso com a inquietante ausência de resposta das forças de segurança do Distrito Federal. Até a data de envio do texto, ninguém foi detido ou responsabilizado pelos ocorridos na capital do País. Diferentemente dos episódios do Capitólio estadunidense, aqui parece que um calhorda pode incitar seu séquito alucinado por quatro anos a deslegitimar eleições, desrespeitar resultados e provocar caos em cidades e rodovias. Tudo acabará em pizza.

Nos caracteres que me restam, tento retomar a ideia central: devemos ser realistas com o cenário pela frente, mas desejar e demandar o impossível faz parte de ser realista. Nosso horizonte não pode ser que a chapa Lula-Alckmin faça com que as coisas voltem ao que eram. Foi exatamente essa “normalidade” que produziu o bolsonarismo. Outra realidade é possível, e uma das nossas tarefas mais urgentes é mobilizar o desejo, a consciência e o trabalho da nossa classe em um sentido, o da sua emancipação. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pessimismo na ideia…”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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