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Depois da tormenta

Em meio ao calamitoso quadro da educação, o próximo governo terá de buscar mais recursos sem descuidar da gestão, avalia Priscila Cruz

Depois da tormenta
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“Parece que um tornado devastou o MEC”, diz a presidente do Todos pela Educação - Imagem: Redes sociais
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O cenário é desolador. Para 2023, Jair Bolsonaro reservou 5,9 bilhões de reais para a educação básica, valor 34% inferior ao orçamento deixado por Temer e a menor verba em 11 anos. As universidades federais, que chegaram a retardar a ­retomada das atividades presenciais por falta de recursos para pagar despesas básicas, como água e luz, seguem na penúria. Mais de 200 mil pesquisadores sofreram atrasos no pagamento de bolsas de mestrado e doutorado. Diversos órgãos do Ministério da Educação foram sucateados ou completamente abandonados. “É como se você tivesse uma casa destruída por um tornado. Depois de reerguê-la, ainda terá de equipá-la”, compara Priscila Cruz, presidente-executiva e cofundadora do movimento Todos pela Educação, que integra a equipe de transição do presidente Lula.

Diante do calamitoso cenário e do aperto fiscal imposto pelo teto de gastos públicos, a especialista defende que o novo governo tenha atenção redobrada ao planejar os investimentos na educação pública. “Não dá para desperdiçar recursos em projetos que não trarão resultados significativos para os alunos”, afirma Cruz, mestre em Administração Pública pela Harvard Kennedy School of Government.

Na avaliação da especialista, é indispensável melhorar a capacidade de gestão e buscar mais recursos para o setor, nessa ordem. “Não dá para inverter a sequência: primeiro, arranjar mais dinheiro e, depois, ver onde aplicar. É como se fosse uma dança de salão. O casal gestão e financiamento precisa estar entrosado.” Cruz acrescenta que o Brasil não pode mais perder tempo. “É hora de fazer uma escolha: vamos direcionar mais recursos para o orçamento secreto ou para a educação? Para isenções fiscais ou para a ciência e tecnologia?” Confira a seguir a entrevista concedida a CartaCapital.

Ao menos 5 milhões de crianças ficaram fora da escola durante a pandemia, segundo o Unicef – Imagem: Eduardo Aigner/MDS

CartaCapital: Lula tem condições de recompor o orçamento da educação?

Priscila Cruz: O governo Bolsonaro destruiu a educação pública, a situação é de terra arrasada. O problema não se resume ao orçamento anêmico. Houve o abandono de diversas áreas, que demandarão ainda mais recursos nos próximos anos apenas para recuperar o que tínhamos antes. Darei um exemplo singelo: não houve investimento para a renovação do banco de perguntas do Enem. Segundo um diagnóstico do próprio Inep, responsável pela organização da prova, talvez não seja possível rea­lizar o próximo exame por falta de material para preencher os cadernos de prova. Percebe a dimensão do estrago? Não basta, portanto, recompor o orçamento. É preciso assegurar um investimento adicional para arrumar minimamente o Ministério da Educação, o Inep, a Capes, que financia pesquisas nas universidades. Alguns órgãos terão de ser reconstruídos completamente. É como se você tivesse uma casa destruída por um tornado. Depois de reerguê-la, ainda terá de equipá-la. Precisaremos ter muita paciência para cobrar resultados da gestão Lula.

CC: Ainda é factível aquela meta de investir 10% do PIB no setor, como prevê o Plano Nacional de Educação?

PC: Não gosto desse tipo de mensuração arbitrária. Precisa investir aquilo que é necessário, e avançar ao longo do tempo. Agora é urgente recompor o orçamento. Estados e municípios tiveram queda na arrecadação tributária por conta dessa alteração nas regras do ICMS sobre combustíveis, uma das cortesias eleitorais de Bolsonaro. Não dá para fazer um salto de investimento a curto prazo, porque as redes estaduais e municipais, e do próprio Ministério da Educação, precisam ter capacidade financeira de arcar com as despesas. Simplesmente, fixar um valor mágico, como uma meta isolada de todo o resto, não vai trazer os resultados que a educação tanto precisa. Antes de tudo, o Brasil precisa assegurar que toda criança que esteja na escola permaneça nela e conclua o Ensino Médio com todas as aprendizagens a que tem direito. Para isso, é preciso ter recursos e políticas públicas bem implementadas. Se será necessário investir 6%, 8% ou 12%, isso será avaliado conforme a realidade de cada momento.

“O PROBLEMA NÃO SE RESUME AO ORÇAMENTO ANÊMICO. HOUVE O ABANDONO DE DIVERSAS ÁREAS, QUE DEMANDARÃO AINDA MAIS VERBAS APENAS PARA RECUPERAR O QUE TÍNHAMOS ANTES”

CC: Diante desse quadro de aperto fiscal e com o teto de gastos públicos ainda vigente, o que precisa ser feito para melhorar a qualidade da educação básica e recuperar conteúdo perdido na pandemia?

PC: É por isso que insisto nesse ponto: a recomposição orçamentária precisa vir acompanhada de boas políticas públicas. Não dá para desperdiçar recursos em projetos que não trarão resultados significativos para os alunos brasileiros. Em outras palavras, é preciso melhorar a capacidade de gestão e buscar mais recursos, nessa ordem. Não dá para inverter a sequência: primeiro, arranjar mais dinheiro e, depois, ver onde aplicar. É como se fosse uma dança de salão. O casal gestão e financiamento precisa estar entrosado.

CC: Com a pandemia, 5 milhões de crianças ficaram fora da escola em 2020, segundo o Unicef. Esses alunos retornaram ou cresceu a evasão escolar?

PC: Não houve divulgação de dados nos últimos anos por parte do Inep. Salvo engano, o governo apresentou indicadores apenas da Educação Infantil. Estamos no escuro, sem saber a real dimensão do problema. O mesmo ocorre em relação à aprendizagem. Por conta da pandemia, houve uma discrepância muito grande na participação dos estados e municípios nas avaliações do Ideb e do Saeb. Não temos, portanto, um diagnóstico preciso da defasagem educacional provocada pela Covid. Há, porém, uma percepção de que a evasão aumentou muito, sobretudo no Ensino Médio.

Para se desenvolver, o Brasil se inspira no excludente Catar ou no inclusivo Canadá? – Imagem: ILO/Apex Images e Universidade de Toronto

CC: Na sua avaliação, quais deveriam ser as ações prioritárias do governo?

PC: Logo de saída, é preciso fazer a reestruturação institucional do MEC, da Capes, do Inep e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Uma segunda tarefa é restituir o pacto federativo na educação básica. O presidente Lula, de forma acertada, anunciou várias vezes durante a campanha a intenção de convidar os governadores para uma reunião específica, para tratar de educação básica e desse atraso educacional causado pela pandemia. É preciso lançar uma política emergencial de recomposição da aprendizagem, conduzida de forma tripartite, entre União, estados e municípios. O próprio Todos Pela Educação tem um documento bastante extenso e detalhado a respeito do tema. Outra iniciativa importante é fortalecer a Secretaria da Primeira Infância e trazê-la para a estrutura da Presidência da República. Ali teríamos o berço de diversas políticas educacionais. No fundo, governar é definir prioridades. A alocação orçamentária é uma boa forma de medir a prioridade dada por um governo a determinada área. Logo no início do mandato, será possível verificar se Lula prioriza mais a educação do que o antecessor, se ele vai realmente recompor o orçamento do MEC, se vai ao menos buscar um nível de investimento próximo do que tínhamos há quatro anos.

CC: Há tempos existe uma disputa entre os defensores de metas de ­desempenho para as escolas, com incentivos financeiros para quem se sair melhor, e aqueles que focam na melhora das condições de trabalho do professor, que não poderia ser punido pelos problemas de aprendizagem dos alunos, também influenciados por questões sociais. Como a senhora enxerga esse debate? Esses pontos de vista são realmente inconciliáveis?

PC: Não é bem assim. Não existem grupos monoliticamente separados, um que defende o aluno e outro preocupado com o professor. Acho que existe uma preocupação muito grande com todas as dimensões do problema. Pode não existir consenso na equipe de transição sobre alguns pontos, mas existem muitas convergências. Uma delas é de que a escola precisa ser um ambiente saudável para as crianças, para os alunos e professores. Tem de ser um lugar de aprendizagem, de desenvolvimento profissional docente. A escola tem de ser bem gerida, ter investimento. Não existe discordância em relação a isso. Há, porém, visões diferentes em relação aos caminhos para se chegar nesse resultado, o que, convenhamos, é muito salutar em uma democracia.

“MELHORAR OS INDICADORES EDUCACIONAIS FAZ COM QUE A GENTE TENHA CRESCIMENTO ECONÔMICO CASADO COM DISTRIBUIÇÃO DE RENDA”

CC: Estima-se que o Brasil investe em torno de 1% do PIB com Ciência e Tecnologia, enquanto nações como a Coreia do Sul aplicam mais de 4%. Não corremos o risco de perder o bonde do desenvolvimento?

PC: Com certeza. Vivemos em um ­país rico, mas com muitos pobres. Então, ­como a gente aumenta a classe média? Como podemos transformar o Brasil em uma nação de renda média alta? O ­País não pode cair na armadilha de ser um mero exportador de produtos de baixo valor agregado. Para crescer com boa distribuição de renda, é preciso investir em capital humano, em ciência, em tecnologia. Temos um potencial criativo enorme, que poderia contribuir para a geração de riqueza ao povo. Precisamos sair dessa estrada de terra esburacada e entrar numa autoestrada, para avançar mais rápido. E essa estrada asfaltada é a educação, o investimento no capital humano. É hora de fazer uma escolha: vamos direcionar mais recursos para o orçamento secreto ou para a educação? Para isenções fiscais ou para a ­ciência e tecnologia?

CC: Em que medida o baixo investimento em educação contribui para perpetuar as desigualdades no Brasil?

PC: Melhorar os indicadores educacionais faz com que a gente tenha crescimento econômico casado com distribuição de renda. Podemos ter outro projeto de país, a exemplo do perseguido pelo Catar, que possui uma elite riquíssima e uma gigantesca massa de miseráveis. Assim como podemos nos guiar pela experiência de países mais igualitários, como Noruega e Canadá. Esses dois países decidiram, em algum momento da sua história, que educação, ciência e tecnologia seriam os motores do seu desenvolvimento. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Depois da tormenta”

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