Cultura
A língua como traço da subalternidade
O moçambicano Manuel Mutimucuio constrói uma comédia cínica sobre a presença portuguesa em seu país
Em um ensaio seminal sobre o pós-colonialismo, a teórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak pergunta já no título: “Pode o subalterno falar?” A discussão que ela tece, tendo como ponto de partida o ritual sati e a intervenção inglesa na Índia, é longa e complexa. Afinal de contas, se o subalterno falar, em qual língua se manifestará ele? O moçambicano Manuel Mutimucuio responde, de forma nada corriqueira, a essa questão.
Moçambique com Z de Zarolho é uma comédia inteligente e cínica sobre os ecos do colonialismo português no país, que, embora independente desde 1975, mantém o português como língua oficial. Na trama, o governo, no intuito de inserir o país no cenário capitalista global, resolve trocar o idioma oficial para inglês. A partir desse mote, Mutimucuio vai explorar os efeitos dessa decisão na vida das pessoas de várias classes sociais.
O protagonista do romance é Hoblo, um rapaz que trabalha como empregado doméstico na casa de um político influente, Djassi, e estuda português à noite, esperando melhorar de vida. A mudança radical e repentina mina seus planos de ascensão.
MOÇAMBIQUE COM Z DE ZAROLHO. Manuel Mutimucuio. Dublinense (128 págs., 49,90 reais)
A língua, como nos mostra Mutimucuio é uma forma de diferenciação social e de manutenção do status quo. Ao questioná-la, o autor joga luz sobre uma discussão relevante, que nunca se dá por encerrada: pátria e identidade nacional.
“Ao adotarmos o português como nossa língua, não só legitimamos o colonialismo, como também escolhemos perpetuar a pobreza que nos legou”, diz uma personagem. “O inglês, por outro lado, é a língua franca da economia moderna.” Não deixa de ser intrigante esse pensamento.
Se a primeira parte desse trecho é claramente verdadeira, a segunda frase evidencia a falácia das elites que parecem desejar calar de vez as classes baixas.
No romance, a mudança do português para o inglês é apenas uma troca de bastão. A colonização permanece, ou seja, muda apenas o colonizador. Ao mesmo tempo, ao colocar em cena um Moçambique moderno, o autor nos mostra as possibilidades do país se dissociar das heranças do seu passado colonial.
Elogiado por Mia Couto, seu conterrâneo mais célebre no mundo das letras, como “uma das mais importantes vozes da atual geração de escritores moçambicanos”, Mutimucuio chega à literatura lusófona como um forte representante, repleto de segurança e coisas relevantes a dizer – ainda que seja na língua do colonizador. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1239 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A língua como traço da subalternidade”
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.



