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A legitimação da pilhagem

Um acordo fechado entre a Grécia e um colecionador norte-americano legitima a pilhagem de peças da Antiguidade

A legitimação da pilhagem
A legitimação da pilhagem
A exibição de artefatos arqueológicos das ilhas Cíclades como glamourosas obras de arte alimenta a febre criminosa pela posse desses objetos - Imagem: The British Museum
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Há alguns meses, um acordo de repatriação de estatuetas cicládicas foi fechado entre dois museus, o governo grego e um bilionário norte-americano. O acordo transitou secretamente até ser aprovado pelo Parlamento grego e, assim, vir à tona, gerando uma imediata reação da comunidade internacional, dos arqueólogos e do público. Seu conteúdo guarda, porém, perigos ocultos.

A primeira coisa a ser esclarecida é a que objetos diz respeito esse acordo. As culturas cicládicas são manifestações pré-históricas que se desenvolveram em um arquipélago do Mar Egeu, as ilhas ­Cíclades, entre 5 mil e 3 mil anos atrás. Ilhas como Santorini, Mykonos, Tinos e Milos, hoje destinos turísticos de luxo, abrigaram, no passado, culturas locais que, entre outras coisas, produziram estatuetas singulares de mármore.

Embora pouco se saiba sobre essas estatuetas, imagina-se que tinham grande valor simbólico, até mesmo sagradas, uma vez que muitas eram enterradas com pessoas. Durante a Idade do Bronze (3000 a.C.–1200 a.C.), pouquíssimas foram exportadas para fora das Cíclades, o que nos leva a entender que as ilhas gregas são seu único lugar de origem.

Durante o século XX, artistas como ­Pablo Picasso buscaram, na linguagem visual cicládica, inspiração para uma nova arte moderna – minimalista, “primitiva”, mas sofisticada. Isso resultou, nos anos 1960, em uma febre pela arte cicládica, que levou ao saque violento das ­Cíclades e à destruição de incontáveis sítios arqueo­lógicos. A partir daí, as estatuetas deixaram de ser artefatos arqueológicos para se tornar objetos de consumo e arte.

Para ver a luz do dia, itens como esses devem ser desenterrados. Arqueólogos conduzem escavações meticulosas e sistemáticas de locais, anotando e etiquetando tudo para, posteriormente, examinar e estudar os objetos. Alguns deles acabam expostos em museus.

A suspeita coleção de Stern será exibida no Metropolitan, em Nova York, a partir de 2023 – Imagem: Redes sociais

Outra maneira pela qual esses objetos deixam seu repouso milenar no solo é quando saqueadores, na calada da noite, pulam as cercas de sítios arqueológicos e cavam às pressas artefatos ou, em outro caso, compram objetos de moradores que os encontraram, enfiam em uma sacola e contrabandeiam para fora do país. A partir desse ponto, adeus: a peça não contém mais os dados que poderiam nos informar sobre sua função, importância, origem e tempo. É um pedaço de pedra de origem duvidosa. Ao mesmo tempo, em galerias do mundo todo, peças assim são etiquetadas como “arte cicládica”, e desejadas como símbolos de riqueza e ostentação.

Esclarecido o significado das peças, cabe apresentar o personagem central do acordo: Leonard N. Stern, bilionário norte-americano que, desde os anos 1980, coleciona “arte cicládica”. Stern diz que a coleção conta com 161 artefatos de mármore, vasos, estatuetas etc., mas se recusa a mostrar a documentação das peças. Ele está satisfeito em alegar que são legítimas.

Ainda que a ministra da Cultura grega, Lina Mendoni, tenha atribuído à coleção “valor arqueológico e científico único”, sabemos que não é o caso. Quem quer que as tenha saqueado, destruiu seu valor arqueológico e científico quando as removeu de seu contexto original, impedindo a condução de qualquer pesquisa futura. As peças podem ser interessantes, mas não cabe mais descrevê-las como artefatos arqueológicos.

Essa coleção de desartefatos arqueológicos é o centro do acordo em questão. Alguns meses atrás, Stern entrou em contato com o Museu Metropolitano de Arte de Nova York (MET) e expressou o desejo de tornar pública a coleção. Nesse momento, uma fundação nova aparece: o ­Hellenic Ancient Culture Institute (Haci), que tem no conselho o filho de Stern e alguns membros da Fundação Goulandris, que possui o museu privado de Arte Cicládica em Atenas, que faz parte do acordo.

A partir daí, com total discrição, governo grego, o Haci, o MET e Stern elaboraram o tratado aprovado pelo Parlamento. Em outubro, 15 peças foram selecionadas e enviadas à Grécia para serem expostas no Museu de Arte Cicládica, e retornarão ao MET em outubro de 2023. O título da atual exposição em ­Atenas? Homecoming. Mas só por um ano. Melhor seria “bate e volta”.

Em janeiro de 2024, toda a coleção deverá ser exibida no MET em um grande evento, “em reconhecimento à generosidade do senhor Stern”, como detalhado no acordo. E não para por aí: na parede acima da galeria, leremos Leonard N. Stern Collection. Apesar do mau gosto, a egolatria é o menor dos problemas.

Todas as 161 peças permanecerão expostas no MET até 2033. A partir daí outro formato começa a valer: 15 peças serão enviadas à Grécia de anos em anos e a Grécia é obrigada a conceder ao museu nova-iorquino peças cicládicas “de igual significado e beleza” – o que quer que isso signifique – escolhidas pelo Haci. Bela repatriação. Isso vai até 2074. Em resumo, as peças são propriedade do Estado grego, mas serão expostas por mais meio século nos Estados Unidos. Mas há coisas piores.

O que também está em jogo é um acerto de contas histórico com o colonialismo

Uma das peças da coleção, rastreada pelo doutor Christos Tsirogiannis, da Universidade de Aarhus, na ­Dinamarca, tem suas origens diretamente ligadas a um famoso e condenado saqueador de antiguidades italiano, ­Gianfranco ­Becchina. Se a única origem possível das peças são as ilhas gregas, e elas não foram escavadas e vendidas por arqueólogos, de onde vêm? E por qual razão Leonard Stern se recusa a apresentar a procedência de sua coleção, bastando-lhe apenas dizer: “Até onde sei, nenhuma delas foi saqueada”. E por que a ministra Lina Mendoni declarou que a coleção era até então desconhecida das autoridades se a mesma foi exibida nos anos 1990 em Manhattan, o próprio Stern ostentou-as em 2006 e já foram até mencionadas num livro em 2005?

Se a coleção era conhecida e sabidamente fruto de saque, ou seja, ilegal, por que o governo grego participou da farsa? A explicação mais curta para a decisão do primeiro-ministro grego, Kyriakos ­Mitsotakis, é: em 2023, há eleição. Há, porém, uma resposta mais longa.

Com a intensificação de leis internacionais e o crescimento de movimentos anticoloniais, está cada vez mais difícil para grandes museus realizar exposições de artefatos ilicitamente adquiridos. O próprio MET sofreu, só este ano, seis devassas da promotoria de Manhattan.

O museu, que vive da circulação de novas exposições, precisa de soluções. Agora, o MET contará com exibições frescas, alimentadas de patrimônio arqueológico grego, sem se preocupar com sofrer mais uma devassa, já que poderá apresentar artefatos legítimos, enviados pela Grécia com regularidade, e as peças da Coleção Stern, que foram lavadas com sabão.

Estabelece-se, assim, um modelo de negócio. Colecionadores interessados em limpar o passado de suas peças, grandes museus internacionais cansados de não poderem expor em paz antiguidades roubadas e governos com um projeto de “quem paga mais” pelo patrimônio histórico-cultural encontram-se em um casamento ideal.

O mercado sodomiza os registros arqueológicos, convertendo-os em peças de arte e extinguindo o valor científico que possuíam. A categorização desses objetos como tesouros artísticos e valiosos cria o desejo de adquiri-los, alimentando seu comércio e, portanto, a necessidade do crime. Para chegar a uma sala de estar em Nova York, elas precisam ser roubadas de sítios arqueológicos.

Aqui e ali, começam a aparecer os efeitos dessa proposta, descrita por ­Mitsotakis como um possível “plano para outras soluções que virão”. O Museu Britânico, que há anos discute a restituição das peças e esculturas de mármore do Partenon e da Acrópole de Atenas para a Grécia, já mostrou os dentes. Seu vice-diretor não tardou em afirmar que os mármores do Partenon são uma “parte absolutamente integral” da coleção do museu, mas que, apesar disso, estão dispostos a proporcionar “trocas culturais”, e que há “coisas maravilhosas que adorariam emprestar” da Grécia.

O Museu Britânico discute a restituição dos mármores do Partenon – Imagem: The British Museum

O Museu Britânico não deseja reconhecer a legitimidade do pedido de repatriação dos mármores do Partenon e teme que, ao devolvê-los, fique entendido que não possui legitimidade sobre a maioria dos itens de sua coleção, obtidos em tempos de um imperialismo selvagem, por meio de conquista e genocídio.

A devolução dos mármores representa uma crise existencial para o Museu Britânico, assim como para outros grandes museus europeus. Já um futuro acordo que invalide a legitimidade do pedido grego representa uma crise existencial para a luta anticolonial do mundo inteiro.

Fechado um acordo em que ambas as partes “ganham”, como quer o Museu Britânico, o caso mais disputado de patrimônio cultural de todos os tempos se dissolveria e, junto com ele, os pedidos legítimos de países historicamente pilhados e vitimizados pelas potências coloniais.

Países como Brasil, México e Egito dependem, em grande parte, de uma vitória grega clara e incontestável, para que o movimento de repatriação do patrimônio ganhe ainda mais vigor. Recentemente, depois de um árduo processo, o fóssil ­Ubirajara Jubatus foi reconhecido pela Alemanha como propriedade do Estado Brasileiro e deve, em breve, retornar ao País.

O acordo selado entre Stern e a Grécia, denunciado pela Associação de Arqueólogos gregos, não passa de um test drive. Especialistas do país estão convencidos de que há uma política sistemática de entrega do patrimônio histórico-cultural grego e que o governo está disposto a seguir com as trocas e os empréstimos. A resolução do caso dos mármores do Partenon, certamente, dará o tom das futuras negociações entre colonizados e colonizadores e nos processos de correção histórica.

Portanto, o acordo fechado com Stern não é apenas um fim deprimente para esta coleção relativamente pequena. Ele estabelece um precedente perigoso ao criar um pseudomodelo de repatriação que não poderia estar mais longe do que a ciência e as nações precisam e desejam. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1239 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Estatuetas roubadas “

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