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Oportunidade rara

Uma política industrial benfeita será crucial para assegurar a valorização sustentável dos salários

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Imagem: Adenir Britto/Prefeitura de SJC
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A reafirmação, por parte de Lula, de que pretende reindustrializar o País e promover a inovação tecnológica, uma condição para melhorar a distribuição de renda e perenizar esse avanço, intensificou o debate sobre políticas industriais nas últimas semanas. As atenções em relação ao tema aumentaram ainda a partir da recomendação do Grupo de Trabalho de Indústria, Comércio e Serviços da equipe de transição para a recuperação do papel do BNDES no financiamento da indústria nacional e para a recriação de um ministério dedicado a este projeto. A retomada das políticas para o setor ocorrerá, porém, em um contexto desafiador, marcado pela reorganização das cadeias de valor e redução das encomendas externas dos países, mas há também novos espaços para competidores como o Brasil, a partir de uma tendência de aumento da demanda por produções locais.

A perspectiva de reindustrialização mobiliza vários segmentos. O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, conhecido pela sigla Iedi, fez uma compilação de estudos recentes sobre o tema e a CUT lançou um documento sobre o assunto. A Fiocruz e economistas da Unicamp publicaram, na quinta-feira 8, um estudo com propostas para o desenvolvimento do complexo econômico-industrial da saúde e o economista Antonio Corrêa de Lacerda, da PUC de São Paulo, lançou o livro Reindustrialização: Para o Desenvolvimento Brasileiro (Editora ContraCorrente). Na mesma semana, o InovaUSP realizou um seminário sobre semicondutores e a competitividade da indústria brasileira.

Em comum às várias propostas, há a compreensão dos prejuízos para a economia e a sociedade decorrentes de décadas de desindustrialização. Existe o consenso de que, sem uma industrialização vigorosa e ampla, com difusão de aumento de produtividade e progresso técnico na economia, não há como vencer a tendência à reprimarização da economia nem consolidar elevações salariais.

Inúmeros trabalhos e pesquisas consideram imprescindível para a retomada do crescimento da indústria uma infinidade de iniciativas, ações e articulações em várias dimensões, a envolver Estado, iniciativa privada, esferas interna e externa, áreas de comércio e tecnologia, entre outras. Apontar um ordenamento de iniciativas, simultâneas ou não, por onde começar e de que modo prosseguir é tarefa essencial, “não só possível, como desejável”, chama atenção Rafael Cagnin, economista-chefe do Iedi. “Uma estratégia industrial não é uma ‘lista de supermercado’ com sugestões reunidas de toda parte. A ação do Estado deve permitir a coordenação e a priorização que a ideia de estratégia exige. Isso deve ser feito, porém, em ambiente propício ao debate e à constante interação entre o setor público, o setor privado e demais parceiros, de modo transparente.”

Ideias. O Minha Casa, Minha Vida pode ter unidades com geração de energia solar – Imagem: Ministério das Cidades

Há necessidade de ações de combate ao custo Brasil, observa o economista, que não apenas melhoram a competitividade da indústria, como também potencializam os efeitos de outras ações de fortalecimento industrial. A reforma tributária para implementar o Imposto sobre Valor Agregado, o IVA, é uma dessas ações, “bastante discutida e que poderia avançar mais rapidamente”. Seria o caso também de maior integração internacional do País, com a implementação do acordo com a União Europeia.

É preciso realizar também ações transversais, sublinha Cagnin, que impulsionam a produtividade da indústria como um todo, bem como sua performance ambiental. A digitalização é um eixo importante nesta direção, mas não basta. “Temos grande heterogeneidade. Há empresas que ainda não estão preparadas para dar este passo, mas podem obter ganhos importantes de produtividade com métodos e técnicas há muito tempo difundidos no mundo. O programa Brasil Mais, antigo Brasil Mais Produtivo, ao racionalizar o processo produtivo por meio da manufatura enxuta, é um bom indicativo disso, mas precisaria operar em escala maior.”

É importante enfatizar, prossegue o economista-chefe do Iedi, que uma trajetória superior de ganhos de produtividade pode viabilizar o objetivo do novo governo de valorização dos salários no País­. No caso do meio ambiente, não se trata apenas de descarbonização, mas também de circularidade e maior eficiência no uso de recursos naturais. Esses eixos deveriam ser enfatizados nas linhas de financiamento do investimento ofertadas pelos bancos oficiais, por exemplo, mas também em instituições de fomento à pesquisa, desenvolvimento e inovação, para que o Brasil participe do desenvolvimento de tecnologias 4.0 e verdes.

O aumento da demanda por produções locais favorece países como o Brasil

“Estas agendas potencializam ‘ações direcionadas’, na nomenclatura da ­OCDE, que vão além do mero recorte setorial. Como são áreas que podem exigir maior priorização, maior ambição tecnológica e, possivelmente, maior custo fiscal, devem ser bem desenhadas e corretamente implementadas, com acompanhamento, avaliação e correções de rumo quando necessários”, ressalta ­Cagnin. É um campo da estratégia da indústria que provavelmente não caberá nos quatro anos de mandato e demandará sinergia entre diferentes áreas do governo e o setor privado.

A ideia de “missões”, popularizada a partir do livro sobre o tema escrito pela especialista em inovação Mariana ­Mazzucato, é muito bem-vinda para estas ações, pois implica dar respostas a desafios da sociedade, o que também ajuda a legitimar os programas. É nesse campo, destaca o economista do Iedi, que as propostas ainda precisam ser mais bem debatidas e aprofundadas, inclusive para saber quais desafios são prioritários. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU podem ser um critério nesse processo de priorização, ao lado das nossas atuais competências tecnológicas e produtivas.

“Alguns caminhos, como no complexo industrial da saúde ou na cadeia de energia eólica, apresentam aspectos positivos nas experiências recentes que podem ser aproveitados e associados a outros, como o mercado de hidrogênio”, diz Cagnin. “Mobilidade urbana, com a descarbonização do transporte coletivo, assim como do transporte de carga, pode ser outro eixo, aproveitando nossa capacidade em biocombustíveis.”

Apostas. O complexo industrial da saúde é visto como estratégico. A desoneração de máquinas beneficia médias empresas – Imagem: iStockphoto e J.Garcia Cordero

As missões podem, ainda, ajudar na comunicação e legitimação da estratégia. É preciso que a sociedade entenda que fortalecer a indústria não é um fim em si mesmo, que isso é importante porque o desenvolvimento industrial é um destacado veículo de progresso econômico e social dos países, e as missões podem demonstrar isso com maior clareza.

Segundo o economista Antônio Carlos Diegues, professor do Instituto de Economia da Unicamp, é importante entender que todos os problemas de desindustrialização remetem a pelo menos três décadas e são, portanto, difíceis de resolver, exigem uma grande sinergia de instrumentos e volumes financeiros de investimento relevantes. “É preciso calibrar as expectativas para não sobrecarregar de novo a política industrial e entender que, se em um horizonte temporal curto, de quatro anos, não for possível resolver um problema tão profundo, não faz sentido chegar à conclusão de que a política industrial não funciona”, diz. Esse cuidado não significa ser pouco ambicioso, mas levar em conta as condições materiais e políticas.

No artigo “A retomada do debate sobre Política Industrial”, publicado pela Unicamp, Diegues e outros autores propõem um guia para políticas de desenvolvimento industrial a partir das características atuais do setor e do conhecimento acumulado no estudo de experiências internacionais bem-sucedidas. O trabalho evita o antigo recorte das políticas industriais horizontais e verticais e recorre à ideia contemporânea de “políticas industriais pervasivas”, que combinam ações horizontais a programas verticais, denominados “direcionados” pela OCDE, de maneira a serem capazes de se adequar às heterogeneidades do tecido produtivo nacional, chama atenção o Iedi em um resumo do estudo.

As políticas industriais pervasivas contribuiriam, segundo os autores, para a construção de novos consensos quanto aos objetivos e desenhos de uma estratégia industrial contemporânea para o Brasil e a criação de uma coalizão de forças políticas que oferecesse suporte a esta estratégia, por um período longo o suficiente para as ações darem resultado. Esses consensos se dariam em torno da necessidade de se fomentar a produtividade e a competitividade da indústria brasileira, principalmente por meio da inovação, de forma responsável do ponto de vista socioambiental.

Há necessidade de construção de novos consensos em torno de uma estratégia industrial moderna

“É preciso entender a heterogeneidade da estrutura produtiva brasileira, que requer, por exemplo, um programa de extensionismo que leve a inovação, principalmente, às pequenas e médias empresas”, ressalta Diegues. “Isso custa barato, é de efeito rápido e tem aderência ao anseio da população e dos industriais. Além de aumentar a produtividade, a competitividade e o espaço para ofertar salários melhores na base da pirâmide.”

Esse esforço, na proposta de Diegues, viria acompanhado de políticas de fomento aos serviços intensivos em conhecimento vinculados à indústria, que geram empregos qualificados e têm pouca intensidade de capital por trabalhador, portanto, o custo para gerar novos empregos é barato, pagam salários bem mais altos que a média, contam com demanda muito rápida no Brasil e no exterior, e isso tem efeitos multiplicadores importantes para a estrutura produtiva como um todo. O professor da Unicamp considera necessária a desoneração total dos investimentos em compra de máquinas, equipamentos e demais bens de capital, o que beneficiaria médias empresas, e ainda uma política de formação de mão de obra em recursos humanos para TI e desoneração tributária também dos serviços intensivos em conhecimento.

Um exemplo de combinação de ações horizontais e programas verticais seria a participação do programa Minha Casa Minha Vida na geração de energia solar fotovoltaica e aquecimento solar. “Esse tipo de articulação tem grande legitimidade social e política, até entre os empresários mais refratários”, ressalta Diegues. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1239 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Oportunidade rara “

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