Política
Oportunismo amador
Na atabalhoada tentativa de preservar o mandato, Sergio Moro pede socorro a Bolsonaro e se oferece ao PL


“Relato de um náufrago que esteve dez dias à deriva numa balsa, sem comer nem beber, que foi proclamado herói da pátria, beijado pelas rainhas da beleza e ficou rico com a publicidade e depois foi malquisto pelo governo e esquecido para sempre” Gabriel García Márquez
A trajetória de Sergio Moro é bastante distinta da trilhada por Luís Alexandre Velasco, único sobrevivente do naufrágio do destróier Caldas, da Marinha da Colômbia, encontrado semimorto numa praia deserta ao norte do país e transformado em herói nacional pela folclórica ditadura de Gustavo Rojas Pinilla. O ex-juiz figura, porém, em um enredo tão rocambolesco quanto o da instigante narrativa de Gabriel García Márquez. Impossível saber como o escritor colombiano, Nobel de Literatura em 1982, resumiria a história do provinciano magistrado, que se aventurou em uma cruzada contra a corrupção no Brasil, foi aclamado herói nacional pela mídia, acabou desmascarado por um hacker, e ainda assim integrou o governo do populista de extrema-direita que ajudou a eleger, depois terminou malquisto pelo chefe, saiu atirando, reconciliou-se por conveniência e, uma vez eleito senador, vê o mandato ameaçado pelo partido do seu padrinho. Ufa!
Recentemente, o PL, partido de Jair Bolsonaro, apresentou ao Tribunal Regional Eleitoral do Paraná um pedido de impugnação da candidatura de Moro, com base em denúncias de doações antecipadas de campanha e irregularidades na prestação de contas à Justiça. Sob sigilo, o processo pode resultar na cassação do mandato do senador, eleito com 33,82% dos votos válidos dos paranaenses. Caso a Corte acolha os argumentos apresentados pela legenda, o ex-juiz perderia a vaga no Congresso Nacional para Paulo Martins, do PL, segundo colocado na disputa, com 29,12%. Interposta pelo diretório paranaense da sigla, liderado por Fernando Giacobo, a ação foi classificada por Moro como um golpe baixo de “maus perdedores”, que sofreram uma derrota nas urnas e agora tentam ganhar “no tapetão”.
“Jamais cogitei essa hipótese”, afirma o ex-juiz, que não hesita em trair aliados
Curiosamente, o senador eleito recorreu a outro mau perdedor, Bolsonaro, que até hoje não admitiu publicamente a derrota para Lula na corrida presidencial, para pedir a retirada do pedido de cassação no TRE. Moro acredita que o ex-capitão, para quem pediu votos no segundo turno das eleições, a despeito da tormentosa relação com o antigo chefe quando estava no comando do Ministério da Justiça, lhe deve esse favor. Estaria disposto, inclusive, a abandonar o União Brasil para se juntar às fileiras do PL, informou o colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo. Parece pouco provável, contudo, que Bolsonaro vai se indispor com Valdemar Costa Neto, que abrigou o clã do presidente em exercício em sua sigla. A raposa do Centrão não quer ver o ex-juiz nem pintado de ouro, por acreditar que ele ajudou a preparar a sua prisão em 2012, quando assessorava a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do “mensalão”.
“Costa Neto não seria tão ingênuo de aceitar um filiado com um histórico de traições tão extenso”, observa o advogado Wilson Ramos Filho, o Xixo, idealizador do Museu da Lava Jato, dedicado à preservação da memória dos numerosos abusos cometidos pela operação. “Moro tem uma compulsão pela deslealdade. Ele traiu a Constituição e o Direito ao transformar a Lava Jato em um instrumento de persecução política, atraiçoou Bolsonaro ao abandonar o governo, acusando o ex-chefe de interferência política na Polícia Federal, para depois abraçá-lo no segundo turno das eleições. Ele também ludibriou o Podemos, trocou a agremiação que o acolheu pelo União Brasil, de olho no fundo partidário. Depois, traiu os paranaenses ao tentar disputar o Senado por São Paulo, decepcionou os paulistas ao voltar para o Paraná, quando a Justiça Eleitoral barrou a manobra, apunhalou Álvaro Dias, ao disputar a mesma vaga cobiçada pelo aliado que lhe abriu as portas no Podemos. Agora, quem poderia imaginar, ele trai o União Brasil, ao se oferecer para o PL em troca da retirada do processo”.
Portas fechadas. Valdemar Costa Neto não quer ver o ex-juiz nem pintado de ouro. Por que Bolsonaro iria se meter na arenga? – Imagem: Mateus Bonomi/Agif/AFP
Moro, vale ressaltar, desmentiu Lauro Jardim nas redes sociais: “Jamais cogitei essa hipótese”. Difícil é confiar na versão do ex-juiz com essa trajetória de trapaças, emenda Xixo. “Ele é malquisto à esquerda, por tudo o que fez contra Lula, é desprezado pelos bolsonaristas, por sua tormentosa passagem pelo Ministério da Justiça, é visto com desconfiança por toda a classe política. Fico me perguntando quem toparia tomar um cafezinho com ele no Senado. Deve ficar completamente isolado. Eu não compraria nem um Chevette dos anos 1980 dele. Ainda assim, um terço dos paranaenses confiou seu voto em Moro. Vai entender essa turma…”
Para não morrer de tédio e solidão, o ex-juiz teria de trocar o tapete azul do Senado pelo verde, da Câmara dos Deputados, onde talvez seja mais bem recebido por parlamentares do Novo, o partido mais identificado com o lavajatismo, emenda o cientista político Cláudio Couto. “Moro não ficará apenas isolado, ele será devorado pelos colegas senadores. Trata-se de um político oportunista, que privilegia sempre os próprios interesses, mas que se move com um amadorismo inacreditável. Por que o ex-capitão iria socorrê-lo? Na verdade, acho pouquíssimo provável que a Justiça Eleitoral vai, de fato, cassar o seu mandato. Ainda assim, ele correu para se oferecer ao PL. Corre um enorme risco de ficar mal com os dois lados, é muito fraco para fazer cálculos minimamente razoáveis”, observa. O professor da FGV de São Paulo também considera equivocado o temor do ex-juiz de ficar escanteado no União Brasil, caso a legenda feche algum tipo de acordo com o governo eleito. “Esse é mais um raciocínio amador. Todos sabem que, dentro da agremiação, há gente de todos os perfis. Nem todos vão aderir. Ou ele imagina que Tereza Cristina, ex-ministra de Bolsonaro, de repente vai apoiar Lula?”
A União terá de pagar indenização de 60 mil reais a filho de Lula, por diálogos divulgados ilegalmente por Moro
Embora a ação de impugnação da candidatura de Moro esteja sob sigilo, é provável que o PL do Paraná tenha usado conclusões da área técnica do Tribunal Regional Eleitoral para embasar o pedido. Em parecer técnico conclusivo de 22 de novembro, Christiana Tosin Mercer, da Seção de Contas Eleitorais da Corte, e Paulo Sérgio Esteves, da Coordenadoria de Contas Eleitorais e Partidárias, recomendaram a reprovação das contas do ex-juiz. Entre as irregularidades constatadas figuram divergências entre os valores de despesas declaradas e os que constam em notas fiscais, gastos com agências de viagem em data posterior ao fim da eleição e pagamentos sem instrumento contratual ou por valores superiores ao contratado por atividades de militância e mobilização nas ruas. A campanha de Moro arrecadou 5,1 milhões de reais, a maior parte proveniente do fundo partidário, e gastou 800 mil reais com um escritório de advocacia e 426 mil com táxi aéreo.
A contabilidade lavajatista também não deu certo para a advogada Rosângela Moro, esposa do ex-juiz e deputada federal eleita pelo União Brasil de São Paulo – Sergio Moro também tentou disputar o Senado pelo estado, mas a Justiça eleitoral não aceitou o endereço de um flat alugado poucos meses antes da campanha como comprovante de residência. Na sexta-feira 9, a área técnica do TRE de São Paulo recomendou a reprovação das contas da neófita parlamentar. A equipe, liderada por Vera Lúcia Guerreiro Annes, chefe da Seção de Contas Eleitorais, identificou despesas com combustíveis para veículos sem comprovação de que estavam servindo à campanha, pagamentos a fornecedores com valores diferentes das notas fiscais e gastos que não passaram pela conta bancária da campanha.
A exemplo do ocorrido com o marido, Rosângela Moro teve algumas semanas para esclarecer as inconsistências, mas os técnicos não ficaram satisfeitos com as respostas. Por conta disso, recomendam que a deputada eleita seja obrigada a devolver ao Tesouro Nacional 853,9 mil reais por gastos eleitorais irregulares pagos com verba do Fundo Partidário, outros 6,8 mil por recursos “de origem não identificada”, 17,5 mil por impulsionamento irregular de conteúdo na internet e mais de 1 milhão por despesas irregulares com recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha. O montante corresponde a 70% dos 2,8 milhões de reais gastos pela candidata.
Ingratidão. Álvaro Dias acolheu Moro no Podemos e ganhou um adversário nas eleições – Imagem: Jefferson Rudy/Ag.Senado
Não bastasse, os desmandos de Sergio Moro na Lava Jato continuam causando prejuízos à União. Na segunda-feira 12, a Justiça Federal determinou que o governo pague 60 mil reais de indenização por danos morais a Fábio Luís Lula da Silva, filho do presidente Lula, e à mulher dele, Renata de Abreu Moreira, pela divulgação ilegal de conversas deles com amigos e familiares, que haviam sido grampeadas pela Polícia Federal no curso da Lava Jato. A juíza Ana Lúcia Petri Betto, da 6ª Vara Cível Federal de São Paulo, considerou que a divulgação dos diálogos, ordenada pelo então magistrado em 2016, foi ilícita, pois nada tinham a ver com as investigações.
“Desde a ilegalidade do domicílio eleitoral, passando pela indecorosa mudança de partido político, com muitas traições, até chegar ao despudor de acompanhar Bolsonaro nos debates eleitorais, depois de ter sido forte e regularmente insultado pelo presidente, essa trajetória apenas demonstra a inabilidade política, a deficiência ética e a acanhada inteligência do ex-juiz”, avalia a advogada Gisele Cittadino, coordenadora do programa de pós-Graduação em Direito da PUC-Rio e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. “Quando Moro alcançou publicidade na magistratura, o meio jurídico conheceu um juiz extraordinariamente limitado. Quando ele desponta na vida pública, não foi diferente: todos percebem que estão diante de alguém cuja palavra não merece crédito, cujos atos são desprovidos de grandeza política, cuja personalidade não inspira confiança. Nem é preciso dizer o que o futuro lhe reserva.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1239 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Oportunismo amador “
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.