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Cartas marcadas

Cristina Kirchner é condenada a 6 anos de prisão por corrupção em um processo ao estilo da Lava Jato

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Lula de saias. A vice-presidente argentina enfrenta um massacre midiático de fazer inveja ao petista - Imagem: Instituto Pátria/Arsenal-Sarandí
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O espírito da Lava Jato agoniza, mas não morre. Após três anos e meio de um processo maculado, ao estilo Sergio Moro, por claros indícios de perseguição política, manipulação e conluio entre magistrados, empresários antiperonistas, meios de comunicação e a oposição de direita, a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, foi condenada em primeira instância a seis anos de prisão por supostamente chefiar uma organização criminosa dedicada a desviar dinheiro público. Kirchner manteve por ora os direitos políticos e vai recorrer em liberdade. O desfecho da batalha levará anos, até um parecer definitivo da Suprema Corte. Caso seja derrotada em todas as apelações, ela será presa e banida da vida pública. A condenação antecipa, no entanto, a corrida presidencial de 2023. Em pronunciamento na noite da terça-feira 6, depois de conhecer a decisão do trio de juízes do caso – Rodrigo Giménez Uiruburu, Jorge Gorini e Andrés Basso –, a vice-presidente anunciou a desistência de se candidatar a qualquer cargo no próximo ano.

Kirchner é acusada de usar um testa de ferro, Lázaro Báez, antigo caixa de banco que se tornou da noite para o dia um influente empreiteiro na região de Santa Cruz, para desviar dinheiro público. A empresa de Báez conquistou 51 contratos durante os mandatos presidenciais de Néstor Kirchner, falecido marido da líder peronista, de 2003 a 2007, e dela própria, entre 2007 e 2015. Houve, segundo o Ministério Público, superfaturamento em 50 das 51 obras, e 24 foram pagas integralmente, apesar de abandonadas ou não concluídas. A lavagem de dinheiro se daria por meio de diárias forjadas por Báez em dois hotéis construídos pelo casal Kirchner. A divulgação dos detalhes da sentença e a fase de recursos começam em março.

Apoio. Os peronistas acreditam na manipulação do processo e continuam fiéis – Imagem: Juan Mabromata/AFP

No pronunciamento oficial, ao mesmo tempo mensagem à nação e recado a uma figura central da trama, Hector ­Magnetto, dono do Clarín, a Globo argentina, inimigo declarado do peronismo, a vice-presidente não contemporizou. “Esta não é uma sentença pelas leis da Constituição”, afirmou. “Tem sua origem em um sistema que ingenuamente chamei de lawfare, depois de Partido da Justiça. Não é lawfare nem Partido Judiciário. Isso é Estado paralelo e máfia, a confirmação de um sistema paraestatal.” Antes, fez questão de citar nominalmente o empresário: “Não serei candidata. Muito boa notícia para você, Magnetto, pois no dia 10 de dezembro de 2023 não terei privilégios e eles poderão dar ordem aos seus capangas para me colocar na cadeia. Mas seu animal de estimação, nunca”.

A referência a Magnetto não foi gratuita nem subterfúgio de quem prefere atacar a imprensa a assumir sua culpa. Às vésperas do anúncio da sentença, o jornal Página 12 revelou um encontro de juí­zes, promotores, empresários de mídia, ex-agentes do serviço de inteligência e integrantes do partido oposicionista do ex-presidente Mauricio Macri em uma fazenda em Lago Escondido, estância turística em Ushuaia famosa pela paisagem exuberante e a imponência das propriedades. Segundo o diário, o motivo principal do convescote, para o qual os convidados foram levados às pressas em um voo fretado, teria sido a definição dos termos da condenação de Kirchner. A história só piorou. Na sequência da denúncia, veio à tona uma troca de mensagens no aplicativo Telegram, na qual os participantes da reunião combinam estratégias e propõem desculpas esfarrapadas para desmentir a publicação. Trata-se, na devida proporção, da versão argentina da Vaza Jato, que expôs os crimes da República de Curitiba.

Contra-ataque. Fernández expôs em rede nacional o conluio entre juízes, promotores, mídia e a oposição de direita – Imagem: Casa Rosada Presidência

Ao tomar conhecimento não só da tramoia em Lago Escondido, mas da tentativa de encobri-la, o presidente Alberto Fernández prometeu investigar e punir os responsáveis. “Espero que todos se conscientizem da gravidade dos fatos. Faz mal à democracia ver a promiscuidade antirrepublicana com que alguns empresários, alguns juízes, alguns promotores e alguns funcionários se movem. Até agora eles se sentiram impunes. É hora de começar a ser responsabilizados por sua conduta”, discursou em cadeia de rádio e tevê. Entre as medidas anunciadas, Fernández pretende estimular a abertura de processos de impeachment dos magistrados e procuradores envolvidos. O pronunciamento do presidente argentino produziu ao menos o efeito de colocar em evidência um tema ignorado pela mídia corporativa. O Página 12 rema contra a maré em um mercado de informação muito semelhante ao brasileiro, sistema oligopolizado e de mão única. Sob a liderança do Clarín de Magnetto, os grupos midiáticos entregaram-se nos últimos anos a uma sanha persecutória a Kirchner de fazer inveja ao recém-eleito Lula e que joga por terra qualquer investigação séria a respeito de eventuais esquemas de corrupção operados pela vice-presidente. Condenada previamente pelos jornais, rádios e tevês, em uma cobertura dramatizada e diária, como uma novela mexicana, a peronista e seu grupo político viram-se obrigados a se defender de acusações infundadas e fantasiosas, da denúncia dos “cadernos de corrupção”, supostas anotações de um motorista com detalhes dos esquemas, à versão de que quantias abissais de dólares eram enterradas no quintal, ao modo Pablo ­Escobar. Também à semelhança do Brasil, o resultado da cruzada midiática e judicial não resultou na limpeza ética da política. Nada de paraíso, só inferno. O ódio e a violência transformaram-se no motor da disputa política – vide a tentativa recente de assassinato de Kirchner –, dividiram a sociedade entre os “maus” e a “gente de bem” e estenderam o tapete para a ascensão ao poder de um extremismo debiloide e truculento. Jair Bolsonaro precisou de quatro anos para deitar por terra as frágeis estruturas brasileiras. No país vizinho, quem se propõe a cumprir idêntica missão é um desgrenhado economista anticomunista, Javier Milei, que, embora tenha chegado à casa dos 50 anos, cultiva a imagem de enfant terrible.

Na América do Sul, os golpes militares deram lugar ao abuso do aparato judicial

Kirchner na Argentina e Lula no Brasil não são casos isolados na América do Sul e, quem sabe no futuro, os historiadores consigam encontrar as correntes da engrenagem do lawfare, fenômeno citado pela vice-presidente argentina em seu discurso, que consiste em usar o sistema judicial para perseguir inimigos políticos e aplicar golpes de Estado sem a necessidade de convocar as Forças Armadas. As correntes, certamente, passam pela Operação Lava Jato. A investigação comandada por Moro gerou franquias no subcontinente. No Peru, cinco presidentes e ex-presidentes foram acusados de aceitar propina da Odebrecht. Um deles, Alan Garcia, preferiu o suicídio à prisão. Desde então, a política peruana vive mergulhada na instabilidade. Todos os mandatários foram alvo de processos de impeachment. O atual, Pedro Castillo, enfrenta o terceiro pedido em menos de dois anos de mandato. No Equador, Rafael Correa, mentor da “Revolução Cidadã” que tirou milhões de compatriotas da pobreza, refugiou-se na Bélgica para escapar do que acredita ser uma “perseguição do aparato de Justiça”. Na Bolívia, acusações de favorecimento à empreiteira brasileira minaram a confiança em Evo Morales e facilitaram o golpe de 2019, revertido nas urnas um ano depois, em uma vitória incontestável do MAS, partido do líder indígena. Parênteses: na Bolívia, os golpistas não foram perdoados. Jeanine Añez, autoproclamada presidente interina no calor da derrubada de Morales por policiais e militares, acabou condenada a dez anos de prisão.

Versões de Moro. Uiruburu, Gorini e Basso fizeram exatamente o que se esperava – Imagem: Redes sociais

A sentença de Kirchner, a praticamente um ano das eleições presidenciais, e sua decisão de não concorrer a nenhum cargo mudam de maneira substancial o cenário político? Há dúvidas. A oposição, claro, comemora. “É uma renúncia para não demonstrar a humilhação. Qual peronista pode querer que ela seja candidata agora?”, tripudia a deputada Mariana Zuvi, uma das autoras da ação penal. Para os apoiadores da vice-presidente, a condenação era certa, jogo de cartas marcadas, impressão reforçada pelas denúncias do Página 12. As manifestações nas ­ruas após a divulgação da condenação e a vigília em frente à casa de Kirchner indicam que a base não se deixa abalar pelos recentes acontecimentos. Os percalços estão em outro terreno. O governo Fernández tem sido incapaz de cumprir a promessa de debelar a inflação, recuperar o poder de compra da população, retirar milhões da pobreza e superar uma crise que, no vizinho, carece de prazo de validade. Metade do mandato transcorreu durante a pandemia, mas os argentinos estão cansados de desculpas, mesmo quando plausíveis. Em outubro, o índice oficial de preços anualizados atingiu 88% e, apontam as projeções, passará de 100% no fim de dezembro. A pressão inflacionária nubla a boa recuperação do PIB pós-Covid: 10% em 2021 e 4% neste ano, segundo o Fundo Monetário Internacional. O desemprego caiu de 9,6% para 6,9%, mas a pobreza continua em patamares indecentes: 36,5%. A corrupção, como se vê, é o menor dos problemas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cartas marcadas “

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