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Cercado de problemas internos, Joe Biden aposta na política externa para recuperar prestígio

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Baile de gala. Macron foi a estrela da festa organizada por Biden na Casa Branca. O democrata tenta recolocar os EUA no tabuleiro global - Imagem: Ludovic Marin/AFP e Casa Branca Oficial
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Foi a noite em que a “pornografia alimentar” retornou à Casa Branca. Em uma tenda aquecida no gramado sul, líderes políticos, titãs da economia e estrelas de Hollywood se deliciaram com lagosta do Maine escalfada na manteiga, caviar Osetra norte-americano, calotte de carne com geleia de chalota, batatas-manteiga cozidas e queijos artesanais. Joe Biden, um abstêmio que supostamente bebe refrigerante de gengibre, e o presidente francês Emmanuel Macron, a empunhar uma taça de brut ­rosé da Califórnia, usaram smokings e fizeram brindes à amizade. “E deixe-me dizer, vivam os Estados Unidos da América, viva a França e viva a amizade entre os nossos países”, disse Macron.

No primeiro jantar de Estado em ­Washington desde setembro de 2019, a projeção de unidade – e restauração da normalidade – foi inconfundível. O congressista James Clyburn, que estava entre os mais de 338 convidados sob os lustres, disse: “Ver Macron enfiar a mão no bolso, tirar a Constituição dos Estados Unidos e agitá-la, dizendo ‘Nós, o povo’, achei um gesto tremendo”.

Os apertos de mãos e abraços entre o presidente mais velho dos Estados Unidos e o mais jovem da França foram uma ilustração vívida dos esforços de Biden para restabelecer a posição dos Estados Unidos no mundo e curar as relações com velhos aliados, abaladas até o âmago pela substância e o estilo caótico do “Primeiro a América” do ex-presidente Donald Trump. Eles também foram uma potencial prévia de mais visitas de Estado cheias de pompa que ocorrerão na segunda metade da Presidência de Biden. Depois de dois anos relativamente produtivos para sua agenda doméstica, ele enfrentará, a partir de janeiro, uma Câmara dos ­Deputados controlada por republicanos decididos a lançar uma avalanche de investigações e lhe negar novas vitórias políticas.

Na política externa, entretanto, os presidentes desfrutam de maior autonomia e podem usar o cenário global para aparecer como estadistas enquanto buscam a reeleição. Biden, ex-presidente e por muito tempo integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado, tem grande experiência nesse campo, enquanto Trump assumiu o cargo sem nenhuma. Leon Panetta, ex-secretário de Defesa e chefe de gabinete da Casa Branca, disse: “Considerando o possível impasse que ele terá de enfrentar com um Congresso dividido, se eu fosse Biden construiria meu legado com base no que ele é mais forte, sua experiência em política externa”.

A diplomacia dos EUA nos últimos dois anos viveu altos e baixos

A chave desse legado é construir e fortalecer alianças para lidar com pontos críticos globais, argumenta Panetta. “O que mostramos na Ucrânia é que, se pudermos fortalecer nosso relacionamento com, nesse caso, nossos aliados da Otan, pode ser uma resposta muito eficaz para lidar com a Rússia. O mesmo precisa ser feito com Xi Jinping, na China. Se há algo que os autocratas temem mais que qualquer outra coisa são as alianças, porque eles não têm muitas e não são bons nisso. Mas nós somos.”

O ex-chefe de Panetta, Bill Clinton, apreciou a oportunidade de deixar a aspereza de Washington para trás e polir suas credenciais de política externa intervindo na guerra dos Bálcãs, por exemplo. Seu sucessor, George W. Bush, tinha problemas domésticos quando os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 voltaram a atenção para o exterior e elevaram seu índice de aprovação.

Biden teve uma herança diferente. Ele tem sido um homem em missão para tranquilizar o mundo cético de que “a América está de volta” e Trump foi a exceção, não o novo normal. As eleições de meio de mandato, em que os negacionistas eleitorais endossados por Trump foram derrotados, reduzindo a probabilidade de uma crise democrática em 2024, pareceram reforçar seu caso.

Fora da curva? Trump, em mais um momento de grosseria com Angela Merkel. Washington quer provar ao mundo que o governo republicano foi uma mancha na tradição do país – Imagem: Jonathan Ernst/AFP

Richard Stengel, ex-subsecretário de diplomacia pública e assuntos públicos, disse: “O simples fato de suceder a Trump e ser um diplomata tradicional e um crente no poder norte-americano tradicional e nesse tipo de idealismo da política externa faz uma grande diferença por si só. Em termos de apoio à Otan, apoio à Ucrânia, Biden foi eficaz no sentido de que essa é a política externa tradicional que democratas e republicanos adotaram. Isso era o que havia de tão anômalo em Trump”.

A abordagem tradicional esteve à mostra durante a visita de Estado, quando militares em trajes da Guerra Revolucionária do século XVIII desfilaram diante da Casa Branca, a artilharia disparou uma salva de 21 tiros e Biden e Macron falaram a uma só voz sobre a Ucrânia, onde seu apoio diplomático, financeiro e militar produziu humilhações ao líder russo, Vladimir Putin.

Em uma coletiva de imprensa conjunta na sala leste, cercada por árvores de Natal decoradas com gelo e neve falsos, Biden disse que Putin “calculou mal tudo o que calculou inicialmente”. Ele acrescentou: “Estou preparado, se ele estiver disposto a conversar, para descobrir o que ele pretende fazer, mas só o farei em consulta com meus aliados da Otan. Não farei isso sozinho”.

Macron, por sua vez, minimizou as preocupações de que os deputados republicanos retirem o financiamento do esforço de guerra, expressando com tato a confiança de que a população dos EUA e seus representantes entendem valores compartilhados como soberania e integridade territorial.

Assim como o legado de Bush foi definido pela desastrosa guerra do Iraque, o de Biden poderá ser definido pela Ucrânia e pela maneira como ele se mostrou à altura da ocasião, embora o fim do jogo permaneça incerto. Em outras áreas, porém, seu histórico é complicado, mais dramaticamente na retirada fracassada do Afeganistão no ano passado, onde o Taleban voltou ao poder.

Ian Bremmer, presidente e fundador do Eurasia Group, empresa líder global em pesquisa e consultoria de riscos políticos, disse: “De longe, sua melhor política foi a questão mais importante com a qual ele teve de lidar, a resposta à invasão russa, que ele conduziu fantasticamente bem. Esta aliança liderada pelos Estados Unidos tem sido mais forte e mantida de forma mais eficaz do que literalmente qualquer um poderia esperar antes da invasão, principalmente Putin”.

Trump foi um ponto fora da curva na tradição da Casa Branca, insistem os democratas

Bremmer acrescentou, no entanto: “Afeganistão, Irã, Golfo e América Latina têm sido muito pobres. A China é mista, mas em geral positiva e mais estratégica do que vimos sob Trump. A África tem estado em grande parte ausente. O Sudeste Asiático, os aliados do Leste ­Asiático, eu diria que foram bastante positivos, mas não fortemente positivos”.

Se existe uma doutrina Biden, certamente é democracia versus autocracia, pois ele frequentemente articulou a necessidade de as democracias provarem que podem oferecer o melhor para seus cidadãos. Bremmer disse que, com base em muitas conversas com autoridades do governo, ele entende que esse é o paradigma do próprio presidente, não de seu gabinete, e que isso caiu mal com os aliados árabes do Golfo e as democracias emergentes no Sul global, que consideram a posição dos Estados Unidos hipócrita.

Além disso, enquanto Biden caracterizou a Rússia como um Estado pária e isolou Putin, ele está disposto a manter o diá­logo com a China – um regime autoritário mais poderoso e consolidado – e se dá bem com seu líder, Xi Jinping.

Houve outras inconsistências. As declarações robustas de Biden sobre defender Taiwan da China com força militar foram repetidamente atenuadas por seu próprio Conselho de Segurança Nacional. Sua pretensão de defender os direitos humanos foi prejudicada por um atrito com o príncipe herdeiro saudita, ­Mohammed bin Salman, que, segundo concluiu a CIA, aprovou o assassinato brutal do jornalista Jamal Khashoggi no consulado saudita em Istambul. O tiro saiu pela culatra quando a Arábia Saudita apoiou um corte na produção de petróleo pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo.

Obstáculos. Os republicanos conseguiram formar maioria na Câmara e prometem atrapalhar os dois anos finais do mandato de Biden – Imagem: Congresso dos EUA

Até a Europa tem reclamações sobre Biden manter o ímpeto geral do ditado de Trump “Primeiro a América”. Macron e outros alertaram sobre o potencial impacto no comércio internacional da Lei de Redução da Inflação, que inclui gastos climáticos recordes. Em sua coletiva de imprensa conjunta, Biden admitiu que há “falhas” no projeto de lei que precisam ser resolvidas.

Brett Bruen, presidente da agência de relações públicas Global Situation Room e ex-diplomata, dá a Biden apenas uma nota C+. Ele disse: “A Ucrânia tem sido um ponto brilhante onde ele exerceu forte liderança após o que talvez tenha sido uma estratégia inicial menos do que estelar. Mas como ele respondeu ao Afeganistão, à Arábia Saudita e, agora, à Venezuela foi uma série de marcas negativas em nossa posição global que minam o caso de que os Estados Unidos estão de volta. Na verdade, elas servem para mostrar que não traçamos um novo caminho com uma liderança forte, mas procurando os caminhos de menor resistência e maior interesse próprio”.

O presidente octogenário tem ao menos mais dois anos para convencer os aliados de que Trump foi uma anomalia que não se levantará da tumba política para assombrá-los mais uma vez. À medida que a guerra partidária recomeça no Capitólio, não causaria surpresa se Biden estendesse o tapete vermelho para os líderes de Grã-Bretanha, Alemanha, Japão, ou outros velhos amigos. Mas essa é a parte fácil. Larry Diamond, integrante sênior do grupo de pensadores Hoover Institution em Palo Alto, Califórnia, disse: “Historicamente, a política externa sempre foi algo que Biden sentiu como uma força e um conhecimento profundo dele. Mas então a questão é: onde está o espaço para iniciativa e inovação? O mundo ainda está em uma terrível bagunça. Há agitação no Irã, há agitação na China, a Rússia tem sido um completo fracasso político como ­país e regime nos últimos nove meses. Se ele realmente vai ter um impacto transformador na política externa nos próximos dois anos e mudar a forma do mundo numa direção mais profundamente amigável para os valores e interesses norte-americanos, vai precisar de uma visão maior. E de uma capacidade militar mais forte, mais inovadora e reformulada”. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Open bar 

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