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Os cavaletes se movem

Seis meses após o polêmico pedido de demissão de Sandra Benites, o Masp contrata três novos curadores indígenas

Os cavaletes se movem
Os cavaletes se movem
Aquisições. Natureza Morta 1, de 2016, de Denilson Baniwa, e Yube Inu Yube Shanu, de 2020, do coletivo Mahku - Imagem: Denilson Baniwa e Coletivo Mahku
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Em maio deste ano, a antropóloga guarani Sandra Benites pediu demissão do cargo de curadora-adjunta do Museu de Arte de São Paulo (Masp), após saber que seis fotografias ligadas ao Movimento Sem Terra (MST) ficariam de fora da mostra Histórias Brasileiras.

A saída de Sandra, que ocupava o posto desde 2019, teve, à altura, enorme repercussão. O Masp, no entanto, pronunciou-se apenas por meio de uma nota oficial, na qual se esclarecia que o motivo para a exclusão das obras tinha sido o não cumprimento do cronograma previsto em contrato. Passados seis meses, uma nova resposta da instituição chegou.

No fim do mês passado, o museu anunciou Edson Kayapó, Kássia Borges Karajá e Renata Tupinambá como os novos curadores-adjuntos de arte indígena. “Os três curadores serão responsáveis por assessorar o museu quanto à presença e relacionamento com a arte e artistas indígenas no Masp, no âmbito da programação e do acervo”, dizia o comunicado

A curadoria coletiva, um pedido dos próprios grupos indígenas, é, por si, uma novidade, que mexe na estrutura-padrão das instituições. “Sandra ficou muito sozinha naquela situação”, diz Renata que, além de curadora, é jornalista e roteirista. “A saída da Sandra passa pela aceitação de outros modos de ser, de ocupar os espaços e de executar o trabalho.”

Renata, Kássia e Edson dizem que a ideia de coletividade abarca não só os três, mas outros artistas e curadores. Um dos objetivos do grupo é tirar o caráter exótico e folclórico das representações e colocar em foco a contemporaneidade.

“Do ponto de vista cultural, os povos originários são vistos como se estivessem congelados no passado”, diz Edson Kayapó, que lembra com carinho das visitas feitas ao Masp no período do mestrado e do doutorado, realizados em São Paulo. “Eu não me cansava de ir lá, nos dias gratuitos, e ver aquele acervo.”

Mas Kayapó, que pertence ao povo ­Mebengokré, da floresta amazônica, e hoje vive em Porto Seguro – ele é professor na Universidade Federal do Sul da Bahia –, sentia, já naquelas visitas, as ausências de diálogo com a produção indígena. E mais: espantava-se com a insistência na vinculação entre os indígenas e a Amazônia.

“Outra coisa que nos parece fundamental é entender que não existe uma arte indígena. São artes indígenas”, diz, como se o complementasse, mesmo tendo as entrevistas sido feitas de forma separada, Renata. “Somos vários povos, e alguns de nós ocupam espaços urbanos, inclusive.”

É a artista, pesquisadora, curadora e professora na Universidade Federal de Uberlândia Kássia Borges Karajá quem conceitua, a partir da própria experiência como criadora, essas artes, assim no plural. “Tudo é atrasado aqui”, começa ela. “Museus de Londres e Nova York fazem, há tempos, mostras indígenas. Em 1993, vi uma exposição de artistas aborígenes em um museu de Copenhague e até me assustei. Naquela época, aqui, só se via exposição etnográfica. Comecei nos anos 1980 e meu trabalho sempre foi conceitual. Mas, simplesmente, bastava você ser indígena para o olhar sobre o seu trabalho ser etnográfico.”

“Os museus possuem nos acervos artefatos que foram usurpados”, diz Renata Tupinambá

O caminho que os três novos curadores começam agora a trilhar no Masp vem sendo pavimentado, há anos, por muitos artistas e ativistas. Sandra Benites é uma. Jaider Esbell, artista da etnia Makuxi que morreu há um ano e tinha conquistado grande projeção internacional, é outro.

Quem também faz parte desse coletivo que vai tirando da invisibilidade e da incompreensão os artistas indígenas é Naine Terena. Ela é uma das responsáveis pelo projeto Aldear!, apoiado pela Pinacoteca de São Paulo e pelo Museu de Arte Contemporânea da USP, e foi primeira curadora indígena de uma exposição realizada na Pinacoteca –  Véxoa: Nós Sabemos, de 2020.

“Não sei se estamos em um momento de transição ou de conscientização”, diz Kássia. Para além das mostras, uma questão bastante sensível nesse processo é a da constituição dos acervos – não apenas no que diz respeito à falta de obras de artistas indígenas contemporâneos, mas às antigas peças compradas ou doadas.

“Os museus possuem nos acervos artefatos que foram usurpados, e, durante muito tempo, as instituições não se preocuparam em saber como esses objetos foram adquiridos”, aponta Renata. “Mas os museus são espaços em desenvolvimento, e é muito importante ver o Masp atendendo à nossa demanda, por exemplo, por uma curadoria coletiva.”

Uma das missões do grupo será participar da organização da grande exposição coletiva Histórias Indígenas, que incluirá curadores indígenas de diferentes partes do mundo e está programada para o segundo semestre de 2023. Essa mostra se insere no percurso que, desde 2016, o Masp vem percorrendo.

A partir de mostras como Histórias Afro-Atlânticas (2018) e Histórias Brasileiras (2022), o museu, constituído a partir de clássicos da arte europeia que, por anos, monopolizaram os cavaletes desenhados por Lina Bo Bardi, olha também para a sua própria história.

Hoje, dentre os artistas autodeclarados indígenas a compor o acervo da ­instituição estão Denilson Baniwa, de ­Barcelos, no Amazonas, Carmézia Emiliano, de Normandia – mesma cidade de Esbell –, e o grupo MAHKU, do Alto Rio Jordão, no Acre.

“Carregamos 522 anos da questão de como se formou o Brasil”, lembra Sandra, quando instada a pensar sobre os riscos implicados na chegada ao Masp. “A nossa própria interpretação do que é arte é muito diferente. Temos um entendimento mais profundo, que passa pela saúde, pela história, pela memória.”

Kayapó diz o mesmo, ainda que de outra forma: “O diálogo com a arte não se dá só por meio de telas penduradas. As artes produzidas pelos indígenas dialogam com as nossas cosmogonias”. Kássia, por sua vez, puxa a discussão para a ideia de belo. “A estética não trabalha apenas com o belo. A estética pode ser o contrário do belo, que anestesia”, diz. “Gosto da palavra estesia. Estesia é aquilo que mexe com você, que provoca sensações.”

Em 2023, uma das missões de Kássia, Renata e Kayapó será, justamente, provocar novas sensações e promover ainda mais reflexões. •


AS LÃS DE MADALENA REINBOLT

A artista, que foi empregada doméstica na casa de Lota Macedo Soares, tem seus bordados exibidos no Masp

Texturas. A exposição reúne 44 tapeçarias e pinturas feitas entre as décadas de 1950 e 1970 – Imagem: Acervo Madalena Santos Reinbolt

Como parte do processo de repensar a história da arte no Brasil, o Masp apresenta, até 23 de fevereiro de 2023, Madalena Santos Reinbolt: Uma Cabeça Cheia de Planetas, que reú­ne 44 tapeçarias e pinturas produzidas entre as décadas de 1950 e 1970.

A artista nasceu em Vitória da Conquista, na Bahia, em 1919, e morreu no Rio de Janeiro, em 1977. Trabalhou como empregada doméstica em Salvador, São Paulo e Rio antes de chegar a Petrópolis, em 1949, para trabalhar na residência da arquiteta Lota Macedo Soares e da escritora ­Elizabeth Bishop. As duas, ao verem os bordados da funcionária, decidiram que ela devia tentar vendê-los.

A exposição insere-se, nas palavras do curador André Mesquita, no projeto do Masp de “mostras monográficas de artistas autodidatas”. São artistas que, sem terem passado pelas escolas formais de arte, foram excluídos também do circuito de galerias e museus. Madalena, conta Mesquita, nunca chegou a conquistar autonomia financeira.

Para fazer o que ela mesma definia como “quadros de lã”, Madalena usava 154 agulhas, e variava os tipos de lã e tecido para criar texturas que, vistas ao vivo, de tão atraentes, chamam para si o toque. “Em termos formais, chama atenção como ela desestrutura planos convencionais de perspectiva”, descreve o curador.

Suas figuras, bordadas em cores vibrantes e dispostas umas muito perto das outras, remetem às memórias da infância passada em uma fazenda, às cenas presenciadas nas casas em que trabalhou e à cidade de Salvador.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os cavaletes se movem”

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