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Hollywood se olha no espelho

Carey Mulligan e Zoe Kazan vivem, no filme Ela Disse, os papéis das duas jornalistas que trouxeram à luz o escândalo Weinstein

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Assédio. A produção da Warner, em cartaz nos cinemas, lança mão de recursos documentais para recuperar a investigação da qual se originou o movimento #MeToo - Imagem: Universal e Sarah Morris/Getty Images/AFP
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Em 5 de outubro de 2017, o New York Times publicou uma investigação que mudaria o mundo. Ela citava oito mulheres, “de seus 20 e poucos anos, e esperando conseguir uma posição na indústria cinematográfica”, que haviam sido atraídas para um quarto de hotel pelo produtor Harvey Weinstein, supostamente por motivos de trabalho, e o encontraram “quase ou totalmente nu”.

A reportagem de Jodi Kantor e Megan Twohey citava apenas uma celebridade: a atriz Ashley Judd. Mas, em uma semana, Angelina Jolie, Gwyneth Paltrow e ­Rosanna Arquette se apresentaram, e as rodas começaram a girar no que se tornaria o movimento #MeToo.

Quatro anos depois, no fim da pandemia de Covid-19, as atrizes Carey Mulligan e Zoe Kazan se viram tentando reconstruir esse momento nos escritórios desertos do New York Times, para as filmagens de Ela Disse, em cartaz desde a quinta-feira 8. “A redação estava completamente vazia. Todos os jornais eram datados de 13 de março de 2020, ou algo assim. Foi muito estranho”, diz Zoe. Carey também se lembra daqueles primeiros dias. “Quando começamos a filmar, ainda era obrigatório usar máscaras em Nova York.”

Como estrelas de um dos primeiros acertos de contas de Hollywood com um episódio vergonhoso de sua própria história, Carey e Zoe – neta do diretor Elia Kazan – tiveram de descobrir tudo sobre as duas mulheres que o denunciaram. O ponto de partida foi o livro Ela Disse (Companhia das Letras), no qual as jornalistas relatam a investigação. “Mas não acho que elas estejam acostumadas a pensar em si mesmas como sujeitos; o livro é muito mais sobre a reportagem do que sobre a experiência de fazê-la”, diz Zoe.

A diretora Maria Schrader e a roteirista Rebecca Lenkiewicz estavam decididas a contar uma história mais pessoal, de duas jovens fazendo malabarismos com a maternidade e uma investigação de roer as unhas que, muitas vezes, implicava telefonemas sussurrados, fora do horário comercial, vindos de diferentes fusos horários.

“Se isso pode acontecer com as atrizes de Hollywood, com quem mais estará acontecendo?”, pergunta uma das protagonistas

Megan estava emergindo de uma depressão pós-parto, quando foi atraída por Jodi para o trabalho. “Ela me mostrou uma pilha de pedaços de papel soltos, como versos de envelopes e contas de gás, recibos de compra de alimentos com anotações sobre onde ela recebeu um telefonema de uma fonte que usaria”, relembra Carey Mulligan.

Carey e Zoe estão em suas casas, em lados opostos do Atlântico – na Inglaterra e nos Estados Unidos –, quando conversamos pelo Zoom. É meio-dia em Nova York e Zoe desculpa-se por comer enquanto conversamos: ela tem um bebê de 3 semanas, seu segundo filho, e a amamentação a deixa faminta.

“Era importante que o filme fosse dirigido e escrito por mulheres”, diz. “Não sei se um homem faria essas perguntas sobre como lidar com a paternidade ou sobre a nova experiência da maternidade.” É, de fato, isso que torna Ela Disse tão comovente, diferenciando-o dos filmes habituais sobre furos jornalísticos movidos a testosterona, na tradição de Todos os Homens do Presidente.

Muitas perguntas feitas por Zoe a Jodi podem parecer triviais. Por exemplo, como o jantar chega à mesa e quem a estava ajudando a cuidar das crianças? “Como mãe, entendo o quão vitais são essas questões.”

Assim como Megan, Carey Mulligan sofreu depressão após o nascimento da filha, em 2015. “Uma das primeiras conversas que Megan e eu tivemos foi sobre isso, porque também fui pega de surpresa e realmente lutei”, diz. A atriz podia entender como a investigação sobre Weinstein era importante para a repórter, “como algo sólido a que ela podia se agarrar”. No caso de Carey, a linha de salvação era a obrigação, “muito mais banal, mas meio parecida”, de trabalhar na divulgação do filme As Sufragistas (2015).

Inspiração. Megan Twohey e Jodi Kantor foram as autoras das reportagens – Imagem: Netflix

Mas, enquanto Carey e Joe, assim como as duas jornalistas, optaram por se envolver, a maioria das mulheres não o fez. Uma das primeiras vítimas a se pronunciar foi Laura Madden, que disse estar fazendo aquilo para que suas duas filhas adolescentes não passassem pelo que ela havia sofrido. A atriz estava se recuperando de um câncer de mama quando ­Jodi a localizou. Dias antes, tinha recebido uma ligação de uma ex-colega da produtora de Weinstein, a Miramax, alertando-a para não falar com jornalistas “novatas”.

Outra ex-assistente que se pronunciou foi Rowena Chiu, graduada em Oxford, de origem anglo-chinesa, contratada para trabalhar no escritório da Miramax em Londres na época de Shakespeare Apaixonado (1998) e forçada a assinar um acordo de confidencialidade depois de escapar por pouco de ser estuprada. Ela estava tão envergonhada com o que havia acontecido que não contou a ninguém sobre o incidente durante mais de 20 anos. Até que Jodi apareceu em sua casa, na Califórnia.

Em uma cena que fala de modo econômico e eloquente sobre o custo de tais abusos para as mulheres, a jornalista, horrorizada, sai do jardim da casa e volta para seu carro alugado quando se dá conta de que nem mesmo o marido de Chiu sabia: na busca de um furo de reportagem, ela está revelando uma mulher traumatizada para sua própria família.

A cena deixa clara a responsabilidade que jornalistas e cineastas têm para com as vítimas de injustiça. O fato de serem vidas reais, e não construções fictícias, é enfatizado por uma guinada para o documentário, quando se ouve a gravação de uma conversa entre a modelo ­Ambra Battilana Gutierrez e Weinstein, que tenta convencê-la a encontrá-lo em seu quarto de hotel, depois de tê-la apalpado em uma visita na véspera.

“Rebecca (a roteirista) escolheu desde o início passar um tempo conversando com as sobreviventes, para que elas fossem incluídas no processo de escrita do roteiro”, diz Carey. “Então ficou muito claro que a intenção era honrar sua coragem e suas histórias da melhor maneira possível e garantir que elas estivessem de acordo com o retrato.” Carey ressalta que, independentemente de alguém ser atriz ou secretária, as experiências retratadas são estranhamente familiares a todas as mulheres.

“Era importante que o filme fosse escrito e dirigido por mulheres”, diz a atriz Zoe Kazan

Ela, ano passado, ganhou um pedido de desculpas da revista Variety, após reclamar que a crítica sobre sua atuação em Bela Vingança (2020) foi misógina. “Uma das melhores coisas que aconteceram especificamente em nossa indústria é que as atrizes realmente começaram a cuidar umas das outras”, diz. “Antes de cada trabalho, há workshops de assédio para todo o elenco e a equipe, que falam sobre o que é e o que não é comportamento aceitável.”

Carey Mulligan está numa ­breve pausa em casa, depois de ter terminado ­Maestro, no qual contracena com Bradley Cooper como a mulher do compo­sitor Leonard Bernstein. Zoe ­Kazan, por sua vez, está tirando um ano sabático da atuação para “concentrar-se em escrever, alimentar meu bebê e se alimentar”.

Weinstein continua sendo uma figura sombria em Ela Disse. É visto apenas em silhueta, enquanto é levado para dentro e para fora do escritório do New York Times por seus advogados. “É assim, porque o filme não é apenas sobre ele”, diz Zoe. “A frase mais importante do filme, para mim, é quando Jodi diz a Megan: ‘Se isso pode acontecer com as atrizes de Hollywood, com quem mais estará acontecendo?’”

O que ela quer dizer é que, em vez de transformar um único homem em monstro, o filme ocupa-se da interface entre pessoas e instituições. “Ele mostra como, quando uma instituição como o New York Times apoia pessoas prontas para fazer esse tipo de trabalho e indivíduos dispostos a se adiantar e falar a verdade, a mudança é possível. Porque há muito mais mudanças que precisam acontecer, não apenas em nosso setor, mas em nosso mundo.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Hollywood se olha no espelho “

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