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Privatismo autoritário

Com Bolsonaro e Guedes, o Poder Público é uma terra de ninguém

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Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. Foto: EVARISTO SA/AFP
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A “revolução do privatismo desvairado” de Paulo Guedes e Bolsonaro é um marco (ou uma mancada) na história social e econômica brasileira. Ao longo do desgoverno Bolsonaro, as declarações de Paulo Guedes envolveram promessas ambiciosas de venda de bancos e empresas estatais. Esse cocoricó assinala a persistência das propostas que rejeitam o projeto nacional de desenvolvimento. Venceram, afinal, as forças destrutivas que sempre fizeram pouco da capacidade do País e de seu povo.

Desta vez, a turma do desmanche não se vexou em vestir a fantasia de adeptos da social-barbárie. O presidente Bolsonaro encabeçou a aliança entre o autoritarismo fascistoide e o liberalismo das cavernas, tentando reproduzir episódios conhecidos no mundo da política e da economia.

O economista português Francisco Louçã registra: em visita ao Chile, quando a ditadura de Pinochet se encontrava bem estabelecida – e seus desmandos estavam demonstrados e eram públicos e notórios –, o ultraliberal Hayek expressou adesão à nova ordem numa entrevista ao principal jornal do regime, o El Mercurio, em 19 de abril de 1981. Nela, declarava sem ambiguidades que “a democracia precisa de uma boa limpeza por um governo forte”. Uma boa limpeza. As palavras foram cuidadosamente escolhidas: “Como compreenderão, é possível a um ditador governar de modo liberal. E também é possível a uma democracia governar com total falta de liberalismo. Pessoalmente, eu prefiro um ditador liberal a um governo democrático a que falte liberalismo”.

O que se vê no Brasil de Guedes e Bolsonaro é um Estado submetido às forças do privatismo e do negocismo, incapaz de tomar qualquer decisão desfavorável aos grupos de interesses aboletados no poder. Pior ainda, o Poder Público transformou-se na “terra de ninguém”, onde bandos da alta burocracia bolsonarista se digladiam para ganhar terreno, à custa dos direitos dos cidadãos à segurança econômica e à justiça social. Ninguém tem o direito de se enganar: o Estado brasileiro, mais que nunca, vem sendo dilacerado pela sanha dos dinheiristas e pelos arreganhos das hordas que tentam se apoderar de núcleos cruciais do poder.

Mas as nossas apreensões não devem parar por aí. Os destrutivos – vencedores de hoje – entendem que a industrialização brasileira foi um equívoco monumental, empurrada artificialmente pelas mãos do Estado e sustentada à custa de um protecionismo causador de distorções insuportáveis.

Segundo eles, posta a casa em ordem, haverá uma regeneração espontânea dos mecanismos fundamentais da economia de mercado. As forças de longo prazo promoverão a eficiente alocação de recursos em cada momento e ao longo do tempo. Haverá poupança suficiente para financiar os investimentos, desde que as taxas de juro reais, formadas em mercados financeiros desobstruídos, sejam capazes de exprimir a preferência da comunidade pelo futuro. O crescimento será estável e duradouro e a taxa de desemprego será fixada no seu nível “natural”. A distribuição de renda corresponderá à contribuição efetiva de cada um à formação do produto anual.

Quem teme os resultados dessa aventura entende, com a modéstia requerida, que uma eventual regressão da atual estrutura industrial pode não ser compensada, nem a curto nem a longo prazo, por uma reorganização virtuosa, engendrada a partir das forças “naturais” da concorrência. Haverá destruição, mas não será criativa.

Os construtivos apreenderam com as lições da história: os processos de industrialização na periferia foram, em sua essência, produzidos, com maior ou menor sucesso, por projetos nacionais e quase sempre contra as tendências naturais dos mercados. Nesse sentido, as experiências de industrialização dos países considerados “atrasados”, com a possível exceção dos Estados Unidos, resultaram de políticas deliberadas. Exigiram a construção de instituições adequadas, de mecanismos próprios de financiamento, de políticas de administração do comércio exterior e da moeda capazes de enfrentar as tempestades que vinham, de tempos em tempos, avassalar as economias em desenvolvimento. O Brasil não foi exceção.

O atual governo tenta vender a ideia de que o Brasil é um país desenvolvido, mas injusto. Essa afirmação não resiste a uma averiguação superficial. Trata-se, na verdade, de um álibi para justificar a inexistência de políticas destinadas a estimular o desenvolvimento e a melhora das condições de vida da população. É o álibi da preguiça e da covardia.•

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Privatismo autoritário”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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