Mundo
Paciência zero
Os chineses expressam nas ruas a insatisfação com as medidas draconianas de combate à Covid


Victoria Li** passou por vários confinamentos desde o surgimento da Covid na China, há quase três anos. Como uma prisioneira em sua própria casa em Pequim, ela se sentiu deprimida, impotente e enraivecida. “Presa em casa com a porta lacrada, eu me sentia desmotivada para fazer qualquer coisa”, afirma a advogada de 20 anos. “Não queria trabalhar, não queria estudar. Às vezes eu me arrastava para a cama e chorava.”
Mesmo quando não estava presa, as restrições draconianas perturbavam a vida normal. Depois de um colega testar positivo, Li foi considerada um contato próximo, perdeu seu código de saúde verde durante um mês e, por consequência, ficou proibida de entrar em locais públicos. “Não consegui entrar nos mercados nem nas lojas. Não pude ir ao escritório”, lamenta. “Isso também afetou o meu trabalho. Os negócios iam mal e meu chefe ficou irritado.” Ansiosa por uma vida normal, Li recentemente inscreveu-se para emigrar para o Canadá.
Enquanto a política de “Covid zero dinâmica” de Pequim se prepara para entrar em seu terceiro ano, Li é uma entre os milhões de habitantes em toda a China que chegaram ao fim da paciência. À medida que o número de casos diários atingia recorde histórico, muitas começaram a questionar o alto preço de uma meta impossível de alcançar.
Na quarta-feira 23, a comissão nacional de saúde relatou 31.444 novos casos transmitidos localmente, o maior número diário desde que o Coronavírus foi detectado pela primeira vez na cidade de Wuhan, no centro da China, no fim de 2019. Embora o número de casos locais seja baixo em comparação com os dados globais, as autoridades insistem em uma “guerra de aniquilação” contra o vírus. Como o país acaba de relatar as primeiras mortes por Covid em seis meses, uma nova série de bloqueios foi imposta em todo o território.
As raras explosões de revolta pública que surgiram nas últimas duas semanas são os sinais mais visíveis da profunda frustração e desconfiança dos bloqueios intermináveis, testes em massa e quarentenas impostos aos chineses. Em vídeos compartilhados nas redes sociais no sábado 26, habitantes de Urumqi, capital da região de Xinjiang, pareciam confrontar com raiva as autoridades depois de um incêndio em um apartamento matar dez moradores. Milhares de trabalhadores em uma fábrica de iPhone da Apple no centro do país entraram em confronto com a tropa de choque e derrubaram barricadas. Na semana anterior, migrantes na metrópole de Guangzhou, no sul, romperam as barreiras de bloqueio e marcharam nas ruas. Também nas últimas semanas houve manifestação de pesar nas redes sociais pela morte de um bebê de 4 meses, cujo pai disse que seu tratamento médico foi adiado por 12 horas por causa das restrições da Covid. A morte de um menino de 3 anos no noroeste da China por intoxicação por monóxido de carbono depois de seu pai ser impedido por agentes de levá-lo a um hospital gerou indignação. Uma mulher de 32 anos, mãe de dois filhos, suicidou-se em um centro de quarentena em Guangzhou no início deste mês, depois de ter testado positivo e ser separada do marido. A notícia, relatada pela respeitada publicação financeira Caixin, foi rapidamente eliminada das redes sociais.
As manifestações não parecem abalar a determinação do governo central em erradicar o vírus, custe o que custar
O sentimento de desconfiança do público sobre a eficácia da abordagem de tolerância zero é cada vez mais óbvio. Vozes dissidentes ou narrativas que se desviam das linhas oficiais são rapidamente removidas da internet. Uma delas foi um post de rede social que fez dez perguntas difíceis sobre como as autoridades lidaram com a pandemia. “Historicamente, algum vírus da gripe já foi eliminado? Se não, como o Coronavírus pode ser erradicado? Que preço devemos pagar? Qual é o sentido de rodadas e rodadas de testes de PCR?”, perguntou. Outra postagem deu respostas irônicas às perguntas, entre elas: “Isso não é o que você deve perguntar”, “Isso não é o que você sabe” e “Esses pensamentos são perigosos”.
Em 11 de novembro, o governo chinês anunciou o encurtamento da quarentena e o alívio a algumas restrições. As autoridades locais foram instruídas a evitar a aplicação excessiva de políticas antivírus, mas, confusamente, o governo insistiu que a “guerra” contra a pandemia permanecia firme. Shijiazhuang, cidade de 11 milhões de habitantes a uns 300 quilômetros da capital, foi um caso comentado de teste para dispensar as restrições da Covid. Ela abriu, mas apenas nove dias depois foi fechada novamente, pois o número nacional de casos diários atingiu um recorde histórico.
Segundo observadores, não importa o que o governo central diga, é improvável que as restrições da Covid sejam relaxadas na realidade, pois a estrutura de poder de cima para baixo na China significa que as autoridades locais não evitariam a implementação rigorosa para não serem acusadas pelo aumento de casos.
Como é improvável que as restrições sejam suspensas em breve, os analistas esperam o aumento dos protestos, mas também observam ser improvável que esses casos de agitação esporádica representem uma ameaça para um governo ditatorial que tem o poder de reprimi-los rapidamente. “Os protestos permaneceram esporádicos e desorganizados… Se parecem estar crescendo, é porque gente em todos os lugares é afetada”, disse a professora Victoria Tin-bor Hui, cientista política da Universidade Notre-Dame, em Indiana (EUA). “Mas as medidas da Covid aumentaram drasticamente a capacidade de vigilância do partido. As tensões vão aumentar, mas não podemos prever quando acontecerá a explosão.”
Para o professor Chung Kim-wah, cientista social da Universidade Politécnica de Hong Kong, as manifestações “demonstram que os cidadãos perderam a paciência com as medidas irracionais e questionam sua eficácia”, mas acrescentou que os protestos desorganizados não são fortes o suficiente para contestar o governo. Se forem feitos pequenos ajustes, afirma o acadêmico, os manifestantes geralmente desistem. “Isso torna as mudanças de baixo para cima muito difíceis, se não impossíveis”, disse ele. •
*Colaborou Xiaoqian Zhu.
**O nome foi alterado.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Paciência zero “
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