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Reino silenciado

As populações de animais silvestres continuam a desaparecer em ritmo alarmante

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O tigre de Sumatra, espécime à beira da extinção - Imagem: iStockphoto
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Em 2010, políticos e cientistas se comprometeram a interromper a redução devastadora do número de animais silvestres e marinhos que despovoou o planeta dessas criaturas no século passado. Naquela época, as populações de animais silvestres diminuíam em torno de 2,5% ao ano, em média, devido à perda de hábitats, espécies invasoras, poluição, mudanças climáticas e doenças que devastaram ambientes naturais e vidas. Tais perdas deveriam terminar dentro de uma década, foi o acordo.

Neste mês de dezembro, conservacionistas e políticos se reunirão em Montreal, no Canadá, para a cúpula da biodiversidade deste ano, na qual julgarão o progresso feito nos últimos 12 anos. “Será uma avaliação fácil de fazer”, disse Andrew Terry, diretor de conservação da ZSL, a Sociedade Zoológica de Londres. “Absolutamente, nenhum progresso foi feito. As populações continuaram a diminuir a uma taxa próxima de 2,5% ao ano. Não retardamos a destruição nem um pouco. Como resultado, a biodiversidade do nosso planeta está agora em perigo desesperador.”

O objetivo da cúpula canadense da biodiversidade, COP-15, é adotar um plano globalmente acordado, o Post-2020 ­Global Biodiversity Framework, ou Quadro da Biodiversidade Global Pós-2020, para viver em harmonia com a natureza. A ideia é que até 2050 a biodiversidade seja valorizada, restaurada e conservada. Entretanto, as perspectivas de sucesso parecem sombrias, ponto enfatizado no mês passado no relatório Living Planet 2022 do WWF (World Wildlife Fund), ancorado em dados do índice ­Living Planet da ZSL. O texto destacou alguns dos efeitos mais marcantes que os humanos tiveram na vida na Terra.

“A biodiversidade do nosso planeta está agora em perigo desesperador”, diz o ambientalista Andrew Terry

As criaturas afetadas incluíram o boto-cor-de-rosa da Amazônia (Inia ­geoffrensis), cuja população na reserva Mamirauá, no Brasil, despencou 65% entre 1994 e 2016, os filhotes de leão-marinho do sul e oeste da Austrália (­Neophoca cinerea), que diminuíram 64% entre 1977 e 2019, e as populações de tubarões e raias, que caíram 71% desde 1970. Mais sombrio ainda foi o destino do boto-vaquita ­(Phocoena sinus). Vinte anos atrás, havia cerca de 600 no Golfo da Califórnia. Hoje, a pesca ilegal deixou menos de uma dúzia desses cetáceos vivos. “Essencialmente, estamos assistindo sentados à extinção dessa espécie”, disse Terry.

Da mesma forma, o tigre de Sumatra e o orangotango de Bornéu foram levados à beira da extinção, juntamente com a tarambola e a salamandra-do-inferno na América do Norte. Hoje, apenas 4% dos mamíferos do mundo são silvestres. Os outros 96% são compostos de seres humanos e seus rebanhos. Não são, no entanto, os números a causar mais consternação, afirma Tanya Steele, diretora-executiva do WWF do Reino Unido: “É o fato de não haver absolutamente nenhuma ação. Os líderes mundiais estão ausentes”.

Fonte: CEPH. As cores usadas para destacar pontos de acesso não representam regiões semelhantes.

É um ponto endossado por Terry. “Presidentes e primeiros-ministros compareceram à cúpula do clima no Egito neste mês. Duvido que muitos apareçam em Montreal. A biodiversidade não é considerada tão importante. Ela sustenta, no entanto, os produtos que comemos e o ar que respiramos e nos protege da poluição, de inundações e do colapso climático.”

Enquanto as questões climáticas agora atraem a atenção de muitas agências governamentais – finanças, saúde, trabalho e outras –, a biodiversidade ainda está limitada aos ministérios do Meio Ambiente, que estão entre os órgãos menos influentes na maioria dos governos. O resultado foi um fracasso completo em proteger a vida silvestre no mundo.

A extinção de animais não recebe a mesma atenção dada ao aquecimento global

Uma ilustração do problema é fornecida pelo Reino Unido. Em fevereiro de 2021, um relatório do governo sobre o valor financeiro da vida silvestre foi publicado pelo economista Partha Dasgupta, de Cambridge. Ele argumentou que a biodiversidade deveria ser incluída na avaliação da economia de uma nação, não apenas do PIB. A análise refletiu a revisão inspirada pelo Tesouro de Nicholas Stern em 2006, que transformou a compreensão econômica da crise climática. Apesar de sua recepção calorosa, o relatório de Dasgupta pode ter sido arquivado. “Parece que acabou”, disse Robin Freeman, pesquisador da ZSL e um dos autores do relatório Living Planet. “É frustrante que, como um dos países que deveriam liderar esse tipo de iniciativa, não possamos nem afirmar que estamos indo bem.” No relatório, os autores destacaram várias áreas de preocupação especial. Destas, os sistemas de água doce – rios, lagos e pântanos – estão sofrendo parte dos piores efeitos da perda de biodiversidade. Em geral, as populações de animais silvestres caíram 69% desde 1970, mas em hábitats de água doce houve um declínio de 83%.

“Basta pensar nos sistemas fluviais”, afirma a pesquisadora da ZSL ­Louise McRae, também autora do relatório ­Living Planet. “Muitos rios importantes não estão mais fluindo livremente. Eles foram represados, com impacto sobre as espécies de peixes migratórios. Depois, há poluição, escoamento de fertilizantes agrícolas e pesca predatória. Para espécies como cetáceos de água doce, anfíbios tropicais e outros, foi devastador.” Um exemplo desses impactos é fornecido pelo baiji (Lipotes vexillifer), golfinho nativo do Rio Yang-tse-kiang, na China. Não é observado desde 2002, e há cinco anos foi declarado possivelmente extinto.

É um quadro sombrio e deprimente. Mas há alguns vislumbres de esperança, dizem pesquisadores que apontam sucessos ocasionais de conservação. Os ninhos de tartarugas-cabeçudas ­(Caretta caretta) aumentaram em 500% após medidas de conservação ao longo da Baía de Chrysochou, em Chipre, entre 1999 e 2015, enquanto no Reino Unido o grou comum (Grus grus) – que se tornou extinto – hoje é calculado em mais de 200 indivíduos após um programa de reintrodução lançado em 2010.

Ainda mais notáveis foram os esforços de conservação nas Montanhas ­Virunga, ao longo da fronteira norte de Ruanda, República Democrática do Congo e Uganda, onde os conservacionistas se empenharam para o número de gorilas-da-montanha (Gorilla ­beringei ­beringei) crescer de 480 em 2010 para 604 em 2015 e 2016, apesar da agitação civil que aflige a região.

Essas histórias mostram ser possível combater a perda de vida silvestre, mas não será fácil, acrescentou Terry. “Precisamos estabelecer metas que sejam ambiciosas, responsáveis e mensuráveis. E o mundo em desenvolvimento precisará de apoio financeiro para salvar a sua fauna. Em última análise, grande parte disso vai se resumir aos mesmos problemas que afetam o processo climático. Houve um momento de triunfo em Paris em 2015. E é do que vamos precisar em Montreal no próximo mês. Precisamos de um acordo inovador, um “momento Paris”, porque, se não conseguirmos transformar a nossa atitude em relação à perda de biodiversidade, o planeta terá muitos problemas.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Reino silenciado “

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