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O plano A

Sob pressão do Congresso e do mercado, Lula amadurece a indicação de Fernando Haddad para a Economia

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Foto: Reprodução / TV Globo
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Luiz Inácio Lula da Silva foi operado no domingo 20 para extirpar uma leucoplasia, lesão na laringe possivelmente causada pelo uso intenso da voz na campanha e descoberta oito dias antes. A cirurgia, simples, ocorreu após o retorno das viagens ao Egito e Portugal. Poupar a voz no pós-operatório foi uma recomendação médica, o que o levou a adiar por uma semana o embarque para Brasília. O clima na capital brasileira está complicado para o presidente eleito naquela que é a sua maior prioridade até a posse, arrumar dinheiro para pagar 600 reais de Bolsa Família a 21 milhões de brasileiros no próximo ano. Honrar a promessa eleitoral exigirá mandar às favas o teto de gastos, para horror do “mercado”, e aprovação do Congresso. O Parlamento apronta. Antes da votação, os líderes partidários querem saber como será a distribuição de ministérios entre as legendas.

Um dia após a operação de Lula, ­Gleisi Hoffmann, a comandante do PT, deu um recado à praça, na sede do governo de transição. Manter o valor de 600 ­reais em 2023, afirmou, foi “aprovado por 100% do eleitorado”, pois até Bolsonaro dizia na campanha que, se reeleito, manteria a quantia. “O Congresso Nacional terá muita sensibilidade para nos ajudar a resolver isso”, declarou a petista. Tradução: o Parlamento não pode sabotar o presidente eleito num tema tão sensível, seria ficar contra a população em geral. Um dirigente partidário reproduziu a ­CartaCapital uma declaração ouvida de Gleisi: “O ­Lula não está disposto a dar ministério para aprovar os 600 reais. Se o Congresso quiser ‘ferrar’ os pobres, que faça”. A fonte emenda uma avaliação: “Se o Lula der cargos nessa votação, vai começar mal”. Um senador lulista segue a mesma toada: “Misturar essa votação com a formação do ministério é um erro, é inverter a ordem das coisas”.

O ex-prefeito paulistano tem formação acadêmica na área e experiência pública em finanças e planejamento

Antes de embarcar para o Egito, quando ainda não precisava poupar a voz, ­Lula confidenciou a um interlocutor que para uma certa pasta tem um “plano A”: ­Fernando Haddad, para a Economia. A viagem emitiu sinais a respeito. O ex-candidato a governador de São Paulo pelo PT era o único político ao lado de Lula nos quatro compromissos em Lisboa. Lá, o sucessor de Bolsonaro reuniu-se com o presidente Marcelo Rebelo de Sousa e depois com o primeiro-ministro, António Costa, almoçou com empresários e participou de um evento com a comunidade brasileira. “Temos certeza de que nós vamos recolocar o Brasil no trilho do desenvolvimento com justiça social”, afirmou o ex-prefeito a essa comunidade, síntese da razão de ser o favorito para a vaga de Paulo Guedes.

Haddad, de 59 anos, alinha-se à visão de Lula, de 77, sobre o papel do Estado na promoção de políticas públicas para os mais pobres, massa numerosa no Brasil e para a qual a “mão invisível do mercado” é miragem. É também um político, e a única pista dada por Lula na campanha sobre o perfil de seu timoneiro econômico, em caso de vitória, era a de que seria um político. Na cabeça do presidente eleito, a enrascada na qual o País está metido, com crescimento e salários baixos e ­custo de vida e pressões sociais altos, requer alguém capaz de dialogar (ainda que, nesse quesito, o favorito não tenha tido nota 10 quando prefeito paulistano, de 2013 a 2016, conforme certos petistas). Haddad, além de tudo, não é neófito em economia. Possui mestrado na área pela USP, foi subsecretário de Finanças da cidade de São Paulo na gestão de Marta Suplicy, entre 2001 e 2003, e assessor especial do Ministério do Planejamento no primeiro ano de Lula no poder federal. De quebra, é tido há tempos como “o mais tucano dos petistas”, imagem que talvez lhe renda alguma boa vontade no dito “mercado”.

A Avenida Faria Lima torce o nariz para a volta do investimento público e para o fim do teto de gastos que se desenham no futuro governo. Não raro seus porta-vozes sopram anonimamente que bom mesmo seria um ministro como Henrique ­Meirelles, o “pai” do teto. De 2017 a 2021, Haddad deu aula no Insper, instituição de ensino superior de linha liberal. Um dos rostos do Insper é Marcos Lisboa, para quem “desenvolvimentismo” é palavrão. Quando disputava a Presidência em 2018, o petista declarou: “O meu problema não é o economista ser liberal ou não, eu gosto de liberalismo, mas tem que ter uma preocupação social”. E citou o amigo Lisboa como modelo. Ao deixar o Insper, em março de 2021, tuitou um agradecimento ao colega.

Agregados. Simone Tebet está na disputa pela sucessão de Lula e cobiça o Desenvolvimento Social. Lara Resende participa dos debates na área econômica – Imagem: Antonio Scarpinetti/Unicamp e Simone Tebet 2022

Um exemplo de como a política econômica desejada por Lula causará tensão com o “mercado” se viu na passagem do petista pelo Egito, durante a conferência da ONU para o clima. Na COP-27, o petista disse que “não adianta ficar pensando só em responsabilidade fiscal”, criticou o teto de gastos por tirar dinheiro “da saúde, da educação e da cultura” e comentou saber que ao falar esse tipo de coisa “vai cair a Bolsa, o dólar vai aumentar, paciência”. A Bolsa de fato caiu e o dólar subiu desde então. Uma trinca liberal que declarou voto em Lula na eleição divulgou uma carta a rebatê-lo, Arminio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan. “Sempre foi sabido que o governo Lula iria colocar ‘o pobre dentro do orçamento’, como ele sempre disse e essa proposta foi a vencedora do pleito em outubro, mas a comunicação deste plano tem se tornado traumática além da conta”, avalia André Perfeito, ex-economista-chefe de empresas do sistema financeiro.

Ainda em Portugal, Lula respondeu aos autores da carta. Disse ter ficado “feliz” de receber um “alerta” de “pessoas importantes” e saber “ouvir conselhos e, se fizer sentido, seguir”. Ele havia escalado para o governo de transição dois economistas historicamente ligados ao PSDB, André Lara Resende e Pérsio Arida, e esse tipo de pensamento mais liberal comporá o redivivo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o Conselhão. “Mas só se o Lula for doido ele vai designar para o Ministério da Fazenda, com uma crise econômica que ele vai enfrentar se ganhar, um ministro neoliberal, que pensa o contrário”, dizia em 16 de setembro, ainda na eleição, um antigo colaborador lulista, Luiz Dulci, em reunião online com intelectuais. O triunfo apertado contra Bolsonaro teve apoio de grupos liberais, e Lula não pode ignorá-los, mas a julgar pela posição de Dulci, não há ilusão de casamento. “Há setores nos apoiando hoje que amanhã poderão não estar. Há redes de televisão que não querem que Bolsonaro vença, mas querem continuar com as privatizações, com a política econômica neoliberal, não vão nos apoiar.”

Não só a batalha crucial pelo rumo da política econômica joga a favor de Haddad. Segundo um dos cabeças da campanha lulista, o ex-prefeito deixou claro a Lula não ter interesse em outra área. “Hoje, por exclusão, o ministro da Fazenda vai ser o ­Haddad. É isso ou Planejamento”, afirma a fonte. Lula gosta do ex-prefeito, confia nele e não tem motivo para contrariá-lo. Recorde-se: Haddad foi um de seus advogados na Operação Lava Jato e aceitou a tarefa de enfrentar Bolsonaro em 2018 após Lula ser preso e impedido de concorrer.

A nomeação para a Economia, caso vingue, esboçaria desde agora o tabuleiro da sucessão de 2026. Na campanha, ­Lula descartou concorrer à reeleição. Um ­Haddad timoneiro despontaria como candidato. Há outros na disputa. Suceder a Lula como nome do governismo parece ser um sonho de Simone Tebet, do MDB, daí sua preferência por uma pasta na área social, na hipótese de vir a ser mesmo convidada para o primeiro escalão. Outra peça do xadrez é o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, do PSB, nome até natural, em razão do cargo. Entre os pessebistas, muita gente sempre encarou a candidatura de Lula neste ano como uma solução para destronar Bolsonaro, não como início de uma nova era petista.

Lula promete tomar as rédeas das negociações a partir da próxima semana, quando desembarca em Brasília

Alckmin é o chefe do governo de transição e tem recebido uma romaria de políticos em Brasília. Coube ao vice entregar ao Congresso, na quarta-feira 16, com Lula no Egito, a primeira proposta de licença para garantir dinheiro para os 600 ­reais do Bolsa Família. “A emergência é resolver o orçamento do próximo ano”, afirmou na terça-feira 22. A proposta segue em banho-maria não só por causa do interesse da classe política de saber primeiro qual espaço terá no futuro governo. Um líder parlamentar petista acha ter sido um equívoco escalar Alckmin para a negociação, pois ele está em uma instância muito alta. Melhor teria sido Lula escolher logo seu chefe da articulação política e botá-lo na missão. A ver nos próximos dias, com o presidente eleito a desembarcar em Brasília, como ficará a situação.

Enquanto isso, a equipe de transição quebra a cabeça para contornar o teto de gastos, expor a penúria financeira à espera de Lula e como isso terá consequências para a população em geral, uma forma de forçar o Congresso a cooperar. ­Aloizio Mercadante, um dos generais da transição, repete: há “grave crise financeira”. O senador Randolfe Rodrigues, da ­Rede do Amapá, relatou a falta de dinheiro para a Defesa Civil enfrentar os estragos costumeiros causados no verão por chuvas. O senador eleito Flávio Dino, do PSB do Maranhão, reuniu-se com policiais federais e revelou o buraco de 200 milhões de reais neste fim de ano para a PF emitir passaportes e bancar diárias de agentes e delegados em operações na Amazônia e mais 500 milhões no ano que vem. E por aí vai. “Cenário ruinoso”, havia resumido Haddad em Portugal. Em Brasília, o economista Nelson Barbosa, integrante da equipe de transição e principal formulador de ideias neste momento no time lulista, diz ser possível ter mais gasto público em 2023 sem que isso signifique expansão fiscal, forma de acalmar o “mercado”. Bastaria repetir no ano que vem o nível federal de gastos de 2022. Num cálculo preliminar, essa fórmula liberaria 136 bilhões extras. Mas isso foi antes de o governo Bolsonaro anunciar uma recente revisão de receitas e despesas deste ano. E antes de o IBGE divulgar o PIB do terceiro trimestre, no próximo dia 1º de dezembro.

É a batalha dos bilhões entre o futuro governo, o atual Congresso e o “deus mercado”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1236 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O plano A “

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