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Dois pesos, duas medidas

O mercado acha complicado Lula resolver uma emergência humanitária criada pelo atual governo

Dois pesos, duas medidas
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Efeito multiplicador. Incluir o pobre no orçamento estimula a economia, aumenta a arrecadação e ajuda na questão fiscal - Imagem: Raphael Alves/Amazônia Real e Valter Campanato/ABR
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A reação do bolsonarismo à vitória de Lula não surpreende, porém a rapidez com que o mercado passou a se comportar como se houvesse uma situação de emergência fiscal criada não pelos descalabros do governo atual, mas pela reafirmação dos compromissos de campanha pelo presidente eleito, de comprovada tradição de produzir superávits, é realmente inusitada. Assim como a ressonância imediata dessa tese nos editoriais e no noticiário da mídia, que parece já fazer oposição ferrenha ao futuro mandatário um mês antes da sua posse. Causa espanto, ainda, a atitude de economistas heterodoxos que não viram problema em combater as medidas em discussão, que visam garantir os recursos necessários ao pagamento dos 200 ­reais adicionais ao Auxílio Brasil, prometidos e descumpridos por Bolsonaro, mais um adicional para famílias com filhos de até 6 anos, a um custo de, aproximadamente, 200 bilhões de reais.

O somatório dessas pressões reduz o espaço econômico, político e social para o governo eleito, na expectativa de que ele logo fracasse por falta de fôlego, abrindo caminho para o retorno das teses que levaram a economia ao abismo. “O mercado quer fazer um carnaval em cima da necessidade de incluir despesas impostergáveis que não foram relacionadas no orçamento”, resume o economista Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp e integrante do grupo de Previdência Social na equipe de transição. “É só isso. Ninguém está discutindo arranjo fiscal ou novo marco fiscal, que só será debatido no ano que vem.”

O objetivo das instituições financeiras e dos seus economistas, coadjuvados pela mídia, não é essencialmente financeiro, isto é, o de especular com a turbulência dos índices, mas político. “O mercado quer delimitar o espaço onde o governo pode transitar. Pretende, em primeiro lugar, definir os seus nomes para ministérios-chave. Se for gente que reza pela cartilha da austeridade, vão aplaudir. Caso contrário, continuarão a criar tumulto e instabilidade.” Na quarta-feira 23, faltando mais de um mês para a posse do presidente eleito, a catástrofe econômica, fiscal e humana legada pelo governo atual­ continuava ausente do noticiário, mas as páginas de economia e finanças continham avaliações sombrias sobre incertezas políticas e fiscais, o desempenho negativo da Bolsa em contraste com o resto do mundo, a cotação do dólar a 5,40 reais e conclusões como a do banco J.P. Morgan, de que há um “cenário muito negativo”.

As pressões sobre o presidente eleito visam o retorno das teses que levaram a economia ao abismo

Fagnani critica atitudes como a dos economistas tucanos Arminio Fraga, Pedro Malan e Edmar Bacha, que endereçaram carta ao presidente eleito com críticas e sugestões sobre a questão fiscal. “Eles vão dar lição ao Lula de responsabilidade fiscal? Deixaram o governo em 2002 com 16 bilhões de dólares em reservas, com dívida líquida de 60% do PIB, inflação de 12% e desemprego entre 13% e 14%. E ainda assim querem ensinar a ele o que é responsabilidade fiscal?”, ressalta o economista. Segundo ele, Lula reduziu a dívida líquida para 38% do PIB, aumentou as reservas para 360 bilhões, reduziu a inflação para 6% e o desemprego para 6%. “Fez superávit fiscal em todos os anos do seu governo, o Brasil foi um dos únicos países que fizeram superávit primário depois da crise de 2008, e esses economistas acham que têm de escrever uma carta a Lula para dizer o que é responsabilidade fiscal?”

O fato de Lula ter frisado, em discurso recente na sede da equipe de transição, compromissos de campanha está longe de ser um impulso ou precipitação. “A minha leitura é que isso mostra um amadurecimento. Ele poderia, depois de eleito, dizer que a situação requer alguns ajustes dos seus compromissos centrais, mas não fez isso. Quando ele reafirma que tem de colocar o pobre no orçamento, é uma síntese perfeita, porque, se fizer isso, a economia gira, aumenta a receita tributária e fiscal e isso deixa os fundamentos da economia robustos”, acrescenta Fagnani.

Incompetência. Cerca de 37% das obras públicas federais estão paralisadas – Imagem: DNIT-PA/Ministério da Infraestrutura

“Bolsonaro furou o teto todos os anos, no total foram mais de 800 bilhões de ­reais. Não teve alarde algum no mercado”, emenda o deputado federal Elvino Bohn Gass, do PT. “Essa turma só pensava nos lucros, nos seus acionistas, nos seus bancos. Nós é que temos de nos preocupar com o País. Foi por isso que elegemos outro governo. O chamado ‘mercado’ não consegue aceitar povo pobre comendo bem, viajando, construindo sua casa, tendo filhos na faculdade. Há quem deseje isso só para eles.”

Os indicadores financeiros se estabilizaram logo após o anúncio de que a PEC da Transição faria menção a uma nova regra fiscal, mas, segundo o economista Guilherme Mello, professor do Instituto de Economia da Unicamp e integrante do grupo de Economia na equipe de transição, a preocupação não é responder a críticas, sejam elas do mercado ou de quem for, mas construir a proposta que seja mais robusta e sustentável possível. “Acho que existe essa possibilidade, de fazer uma sinalização sobre uma nova regra fiscal. Se o Congresso entender que é cabível, considero que essa sinalização é positiva não só para o mercado, mas para o País, para ele conseguir superar a necessidade de todo ano ter de aprovar uma PEC, em uma dinâmica política complexa. E construir um arcabouço fiscal que ajude o País a recuperar a credibilidade, a previsibilidade e a transparência, características que o orçamento veio perdendo nos últimos anos.”

Uma síntese da devastação econômica, social e fiscal do governo Bolsonaro consta da Lista de Alto Risco na Administração Pública Federal, preparada pelo TCU e entregue à equipe de transição. O diagnóstico antecipa outro relatório, a ser concluído, com uma comparação entre o Bolsa Família, que o governo Lula pretende retomar, e o Auxílio Brasil, que “incentiva o fracionamento de núcleos familiares, o que prejudica famílias que não podem ser decompostas”, segundo os auditores.

Bolsonaro furou o teto todos os anos, mas não houve alarde no mercado

O TCU apontou 29 áreas que representam um “alto risco para a administração pública federal, devido a vulnerabilidade, fraude, desperdício, abuso de autoridade, má gestão ou necessidade de mudanças profundas para que os objetivos das políticas públicas sejam cumpridos”. As áreas foram selecionadas nos últimos cinco anos, com identificação de problemas crônicos e de grande impacto, para os quais os gestores responsáveis não apresentaram soluções efetivas.

Na área fiscal, que tanto preocupa o mercado, mas apenas em relação ao governo eleito, “os riscos envolvem a governança e gestão das renúncias de receitas tributárias”. Em relação aos 160 bilhões de reais referentes ao orçamento do Auxílio Brasil e do Benefício de Prestação Continuada para 2022, os dados mostram descaso em relação à população mais vulnerável. Os auditores identificaram que o tempo médio de concessão do Benefício de Prestação Continuada para pessoas com deficiência aumentou para 311 dias em 2020, enquanto o prazo normativo previsto é de 45 dias, e que há uma fila de 422 mil benefícios à espera da análise do pedido de concessão. No Bolsa Família, a fila em 2021 reunia 1,34 milhão de inscritos. Chama atenção também outra constatação dos auditores, de milhões de concessões indevidas do Auxílio Emergencial, inclusive para 79 mil militares.

Os auditores identificaram 37% das obras públicas federais paralisadas, que correspondem a 14 mil contratos dentre 38 mil, com a perda de 144 bilhões de ­reais, de investimentos previstos em 725 bilhões. “O conjunto das constatações é uma lástima, mistura má gestão, fraude e indícios de corrupção”, dispara ­Bohn Gass. “O teto de gastos é origem de boa parte dos problemas de orçamento minguado para programas sociais. Alguns economistas ignoram isso porque eles têm lado, e não é o do povo. Essa é a questão. Não existirá desenvolvimento com distribuição de renda se forem mantidos o teto de gastos e o orçamento secreto.”

Ele pode… Em quatro anos, Guedes ultrapassou o limite de gastos em 800 bilhões – Imagem: Washington Costa/ME

Algumas considerações do economista Carlos Aguiar de Medeiros, professor da UFRJ, publicadas nas redes sociais, contribuem para a interpretação do momento atual. A derrota da ultradireita ocorrida em 30 de outubro poderia abrir espaço para políticas sociais e industriais mais ativas defendidas pelo novo governo eleito, com outra coalizão social, mas ambas contrariam a doutrina da austeridade fiscal, e rapidamente movimentos especulativos e a opinião “técnica” dos economistas-consultores prontamente se insurgiram contra propostas que flexibilizam rigidez fiscal.

“Esta doutrina”, chama atenção Medeiros, “particularmente em sua formulação mais radical, a do teto nominal de gastos, introduzido apenas no Brasil entre as economias grandes, não corresponde a uma necessidade real e material da economia, mas a uma construção ideológica de forma a subordinar a política econômica aos interesses dos proprietários de ativos.”

O professor da UFRJ arremata: “Para viabilizar a candidatura de direita ora derrotada, não houve qualquer austeridade fiscal, o teto foi estourado e não resultou nem em massiva fuga de capitais nem em fortes aumentos das taxas de juro e colapso do crescimento econômico. A ameaça de que isto ocorrerá agora se as transferências contra a pobreza forem retiradas do teto decorre simplesmente de um argumento político. Emergirá desse conflito político e ideológico – sobretudo de ideias e concepções sobre o funcionamento da nossa economia – uma maior ou menor autonomia do poder político em relação ao poder econômico.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1236 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Dois pesos, duas medidas “

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