Mundo
Tempo esgotado
Não há espaço para “compensar” as emissões. É preciso eliminar todos os combustíveis fósseis gradualmente


Vinte e sete conferências. Vinte e sete chances de evitar uma catástrofe climática. Vinte e sete oportunidades para salvar milhões de vidas. Vinte e sete momentos que poderiam ter alterado o curso da história. No entanto, à medida que se esgota o tempo para as negociações deste ano, a COP-27 está prestes a entregar outro fracasso. A menos que os líderes mundiais abandonem a postura negligente e consigam aprovar, de última hora, uma resolução efetiva para o combate ao aquecimento global.
Sejamos absolutamente claros: se a COP-27 falhar mais uma vez em entregar um pacote de soluções reais, com financiamento climático e colaboração global, o peso desse fracasso não recairá igualmente sobre os ombros de todos os países. O governo dos EUA, apesar de prometer o contrário, parece determinado a renegar compromissos críticos, deixando um rastro de obrigações desgastadas como o maior poluidor histórico do mundo e o caos climático em seu caminho. E, fiel à forma, outros governos ricos e poluidores, como a UE e o Reino Unido, não ficam muito atrás.
Os EUA são um país que se autodenomina “a terra dos livres e o lar dos bravos”. Não pode, porém, continuar se arvorando no discurso da liberdade. Suas ações condenam comunidades inteiras, no mundo e em seu próprio quintal, às marés crescentes e às secas cada vez mais intensas. E não há bravura em abandonar os outros na luta por suas vidas – isso é covardia. A UE e demais governos do Norte Global também precisam se mover. Deixar outros fazerem a maior parte do seu trabalho sujo significa manter o planeta em perigo, ameaçando as gerações atuais e futuras.
A COP-27 precisa entregar um acordo para estabelecer o financiamento das adaptações climáticas. Mesmo que leve mais tempo para mapear exatamente como funciona esse mecanismo de fomento, os governos devem concordar em fazer isso logo e ter esse mecanismo funcionando em caráter urgente. O governo dos EUA e os comparsas do Norte Global devem parar com seus truques sujos. As comunidades que já sofrem com a catástrofe climática não têm mais tempo para esse jogo.
É indispensável promover a colaboração global e o financiamento para implementar soluções reais em escala e parar de perder tempo. Não temos a criação de um mercado de carbono livre para todos, que provavelmente faria as emissões dispararem. Mercados e compensações de carbono não funcionam na escala necessária, envolvem tecnologia não comprovada e arriscam grandes danos às pessoas e ao planeta. Defender esses esquemas defeituosos, tentando eliminá-los de quaisquer salvaguardas ambientais ou de direitos humanos, sinaliza um novo nível de imprudência.
Ao menos 636 lobistas da indústria do petróleo participaram das palestras da COP-27. Até quando vamos confiar nosso futuro aos grandes poluidores?
A COP-27 deve reconhecer o papel que os combustíveis fósseis – não apenas o carvão – desempenham nas emissões de gases de efeito estufa. Não há espaço para “abatimento” ou qualquer forma de subsídio adicional, o que abriria caminho para a expansão dos combustíveis fósseis. Essa expansão é incompatível com a meta de conter o aquecimento global a 1,5 grau Celsius até o fim do século. Precisamos eliminar gradualmente todos os combustíveis fósseis, e ponto final. O que estamos fazendo aqui?
A conferência do clima não pode colocar uma forma de financiamento devida contra outra igualmente devida. O financiamento para adaptação deve ser dobrado, com etapas claras e cronograma de entrega, e não deve ocorrer à custa do progresso no financiamento de perdas e danos. O pagamento da dívida climática do Norte Global não é caridade nem é boa vontade. É devido e atrasado.
A COP-27 não deve ser o momento em que os países do Norte Global espetam a equidade e a tostam. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, também conhecida pela sigla em inglês UNFCCC, é fundada no princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada. Ou seja, na justiça. Nenhuma reescrita da história pode acontecer aqui. Países do Norte Global: vocês quebraram o planeta, então tratem de consertá-lo. Não apontem o dedo para outro lugar antes de se espiarem no espelho.
O encontro deste ano deve ser a última vez na qual as empresas poluidoras terão permissão para redigir as regras e financiar as negociações do clima. Pelo menos 636 lobistas de combustíveis fósseis se inscreveram para participar dessas palestras, e quase todos os patrocinadores da COP-27 apoiam ou fazem parcerias diretamente com a indústria de combustíveis fósseis. É hora de fazer o que deveria ter sido feito há três décadas e estabelecer uma Estrutura de Responsabilidade, a proteger a ação climática da agenda mortal da indústria de combustíveis fósseis e outros poluidores.
Por fim, as COPs não devem continuar o legado de permitir que os países anfitriões escondam seus abusos de direitos humanos com greenwash ou que corporações poluidoras nos distraiam de seus abusos ambientais. Não podemos continuar olhando para o horizonte a “próxima COP” para prestar contas dos pecados da última. Embora o relógio esteja correndo, o tempo ainda não acabou. Os governos mundiais devem dar meia-volta e fazer da COP-27 um momento de ajuste de contas. Aquele em que o Norte Global finalmente honra sua dívida climática. Aquele em que as soluções reais não são descartadas pelos grandes poluidores. E aquele em que as pessoas importam mais que os lucros corporativos. •
*Diretora de Pesquisa e Políticas Climáticas da Corporate Accountability.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1236 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Tempo esgotado”
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.