Mundo
Pior que Putin
Livre do exército russo, a população de Kherson enfrenta agora o rigoroso inverno


Não fosse a guerra, as crianças ucranianas teriam lotado as praças, parques e ruas nos últimos dias, para brincar na primeira neve do inverno. Não fosse um dos conflitos mais brutais dos últimos 50 anos, Kateryna Sliusarchuk, 71 anos, moradora de Kherson, teria aproveitado o frio para preparar pyrizhky, típicos pães locais assados em forma de barco com uma variedade de recheios, e comer com os netos. Mas esta não será uma temporada como qualquer outra. A primeira neve que caiu nas ruas de Kiev na última quinta-feira 17 marcou o início do que deverá ser o inverno mais difícil da história do país. O frio ucraniano começa a chegar e com ele um pesadelo para milhões de civis que o enfrentarão sem eletricidade, água ou aquecimento.
Nas últimas semanas, a Rússia, na tentativa de forçar a Ucrânia a negociar a paz, tem buscado destruir a infraestrutura energética do país com uma série de ataques em massa. Nenhum sistema de energia do mundo foi submetido a ataques aéreos tão poderosos, e agora há a ameaça de um longo período de apagões. “Já comecei a usar o burzhuika”, diz Kateryna, em referência ao tradicional fogão de metal caseiro da Ucrânia, quando as temperaturas em Kherson caíram a quase zero. “Claro, terei de sacudir os braços e procurar madeira todos os dias para me proteger do frio. E não será fácil na minha idade.”
Depois de comemorar a libertação de Kherson da Rússia, a população começou a coletar madeira, tarefa nada simples em um país devastado pela guerra, e a se preparar para um inverno rigoroso. As autoridades ucranianas alertaram os cidadãos a não entrarem na floresta sem consultar os militares, pois as tropas russas podem ter deixado minas, armadilhas e projéteis não detonados. Com o aumento no preço da lenha muitos não têm, no entanto, escolha a não ser correr o risco. Se não for uma mina, o frio também pode matar. A Organização Mundial da Saúde não mediu palavras em comunicado recente: “A destruição de casas e a falta de acesso a combustível ou eletricidade, devido à infraestrutura danificada, podem se tornar uma questão de vida ou morte”.
Enquanto aqueles que moram em casas em Kherson podem queimar madeira, se conseguirem, quem mora em apartamentos geralmente conta com os antigos sistemas soviéticos de aquecimento centralizado. Os russos bombardearam muitas das usinas termoelétricas do país, que costumavam bombear água quente para os aquecedores dos apartamentos. Olesia Kokorina, 60 anos, vive no oitavo andar de um bloco cinza da era soviética nos arredores de Kherson. Como muitos, ela vive sem luz, água corrente ou eletricidade. “É difícil carregar água pelas escadas até o topo do edifício”, disse ela a The Observer. “Mas não quero ir embora, porque meu apartamento vai ser saqueado. Quanto ao aquecimento, não tenho solução. Espero que resolvam o problema logo, porque à noite as temperaturas começaram a cair significativamente.”
A Rússia ataca a infraestrutura de energia da Ucrânia, para forçar um acordo de paz
Enquanto Kokorina fala, tiros distantes podem ser ouvidos. A linha de frente está a menos de 1 quilômetro de distância, e os combates intensos continuam. Os moradores sabem que o futuro da cidade depende da batalha em curso do outro lado do Rio Dnipro: a segunda usina de eletricidade da região fica ali, em território controlado pela Rússia, e não está em funcionamento. Enquanto permanecer nas mãos de Moscou, as esperanças de restaurar a eletricidade, o aquecimento e a água da cidade são distantes.
“Não há água nem gás”, diz Iryna Gololobova, de 55 anos. “As autoridades locais prometem que, assim que puderem, ligarão o aquecimento. Mas quem sabe? Dizem que a estação de aquecimento precisa de geradores e depois ligam a energia algumas horas por dia. Melhor que nada.”
O frio que se aproxima não é, porém, um problema apenas para os ucranianos. À medida que as temperaturas caem, ficará cada vez mais difícil para o mal equipado exército russo movimentar armamentos pesados na lama, na neve e no gelo. Nas estepes varridas pelo vento do Donbass, as temperaturas podem cair para 30 graus Celsius negativos. De acordo com autoridades norte-americanas, a decisão do Kremlin de sair de Kherson foi baseada em parte na preocupação de que seus soldados “ficassem sem suprimentos com a chegada do inverno”.
O exército ucraniano disse que seus soldados receberam sacos de dormir que deveriam ser bons em até menos 30 graus, roupas íntimas especiais e “meias táticas” para ajudá-los a evitar o pé de trincheira, dano causado pela exposição prolongada à umidade e ao frio que foi comum durante a Primeira Guerra Mundial. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, sabe há muito tempo que o frio é um dos maiores obstáculos nesta guerra. Ainda no fim de agosto, ele alertou a população sobre “tempos difíceis pela frente”. Quatro dias atrás, Zelensky foi ainda mais claro em conversa com jornalistas: “Se sobrevivermos a este inverno, e sobreviveremos, a Ucrânia definitivamente vencerá esta guerra”. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1236 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pior que Putin”
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