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Omissão homicida

O morticínio de jovens negros está relacionado à precariedade da rede de proteção social, atesta pesquisa

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Mão amiga? As políticas públicas são mais efetivas que a repressão policial - Imagem: Giulian Serafim/PMPA
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Em 2019, o estudo Global Study On Homicide: ­Understanding Homicide – Typologies, Demographic Factors, Mechanisms and Contributors, organizado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, alertou para o expressivo aumento de jovens assassinados no Brasil nas últimas décadas. À época, 64 brasileiros com idades entre 15 e 29 anos eram mortos violentamente a cada dia, e 93,9% das vítimas nessa faixa etária eram negros do sexo masculino. Nesse mesmo ano, o professor Giovane Antonio Scherer, coordenador do Grupo de Estudos em Juventudes e Políticas Públicas da UFRGS, iniciou uma pesquisa para compreender melhor as condições de vida desses jovens. Os resultados do levantamento foram revelados no livro Juvenicídio, Território e Políticas Públicas: Rastro de Sangue na Cidade de Porto Alegre, organizado por Scherer e publicado recentemente pela Editora Cirkula.

O estudo coletou informações sobre os locais onde as vítimas viviam e as políticas públicas disponíveis no bairro ou comunidade, para decifrar a dinâmica da mortalidade juvenil nesses territórios. Embora a pesquisa esteja circunscrita à capital gaúcha, o professor acredita que a realidade de outros centros urbanos não difere muito. “Nosso objetivo também é contribuir para um debate nacional sobre o tema”, afirma Scherer.

Os pesquisadores da UFRGS selecionaram aleatoriamente 18 jovens assassinados em Porto Alegre, a partir do Sistema de Informação Sobre Mortalidade do SUS, alimentado pela Secretaria Estadual de Saúde. Na sequência, analisaram as trajetórias dessas vítimas no âmbito das políticas públicas de proteção da infância, assistência social, educação e trabalho. “Na pesquisa, buscamos demonstrar quem são os jovens negros assassinados. Não podemos naturalizar essa barbárie cotidiana.”

No Brasil, o racismo estrutural é o principal componente deste cenário de mortalidade, observa Scherer. Mestre e doutor em Serviço Social, o especialista acrescenta que essa parcela da população vive em áreas de extrema vulnerabilidade, com políticas públicas precárias e sem acesso a serviços básicos de proteção social. “Esses territórios não são violentos por natureza. São violentados pela ausência do Estado, pela truculência da polícia e pelo estigma da sociedade contra seus moradores.”

Os 18 jovens selecionados pela pesquisa sofreram violação de seus direitos desde os primeiros anos de vida. O número de escolas é insuficiente nos bairros de maior mortalidade juvenil, sobretudo no Ensino Médio, onde deveria estar grande parte dos adolescentes assassinados.

“O Estado brasileiro suja as mãos de sangue ao cortar investimentos sociais”, denuncia Scherer, professor da UFRGS

Do mesmo modo, há enorme déficit de unidades de atendimento na área de assistência social, na saúde, no saneamento básico, na cultura e no lazer. Em vez de ampliar o acesso à proteção social, os governos têm reforçado a dimensão punitiva. “O Estado brasileiro suja as mãos de sangue ao cortar investimentos sociais”, denuncia Scherer.

Os moradores entrevistados apontaram uma série de violências que marcaram as trajetórias das vítimas de homicídio. Nesses territórios, os jovens tentam sobreviver entre o tráfico de drogas e a truculência das abordagens policiais. Os relatos mencionam agressões físicas e verbais por parte das forças de segurança, além da prática sistemática de tortura contra qualquer cidadão que pareça “suspeito”. Sem qualquer impacto na redução dos índices de criminalidade, a desgastada estratégia consolida uma gestão de segurança pública desassociada da preservação da vida e da dignidade.

O estudo conclui ser indispensável a ampliação da rede de proteção social e o fortalecimento das políticas públicas, especialmente nas áreas de educação e assistência social. Em todo o mundo, pesquisas comprovam que os investimentos sociais exercem maior influência sobre a redução da mortalidade do que a repressão policial. Mas não é simples convencer a sociedade disso. “O Brasil tem a cultura de que violência se combate com mais violência”, lamenta a juíza Sonáli da Cruz Zluhan, titular da 1ª Vara de Execuções Criminais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

A magistrada lembra que a população periférica é formada, em sua maioria, por cidadãos com pouca ou nenhuma escolaridade, que nem sequer conhecem os seus direitos. Ao longo de sua carreira, Zluhan presenciou situações de flagrantes violações aos direitos dos presos, mas eles só tiveram acesso à Justiça quando foram autores de crimes, e não as vítimas.

Para Rodrigo Azambuja Martins, coordenador da área de Infância e Juventude na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a falta de controle efetivo das atividades policiais por parte do Ministério Público e do Judiciário acaba por “chancelar ou validar as más condutas”, o que só contribui para o aumento da violência nas periferias.

“A omissão e a letargia de quem deveria fiscalizar as condutas dos policiais passam uma mensagem, ainda que subliminar, de que eles podem fazer o que bem entenderem”, alerta Martins. A redução do morticínio de jovens negros, acrescenta o defensor, só será possível com maior investimento nas políticas públicas, intersetoriais e articuladas, e quando os direitos humanos forem, de fato, respeitados. “O problema é que toda essa violência foi banalizada, poucos realmente se importam com esses jovens.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1236 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Omissão homicida”

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